Presunção de Inocência como Norma-Regra

Neste artigo da série sobre presunção de inocência, vamos analisar a aplicação de tal Princípio-Garantia no ordenamento jurídico pátrio.

A literatura e jurisprudência pátria adotam a presunção de inocência em três distintas concepções, que terão consequências ou efeitos pragmáticos, no âmbito do processo penal, também distintos. Dessa forma, adota-se a presunção de inocência como norma-regra de tratamento, norma-regra probatória e como norma-regra de juízo. 

A primeira delas – presunção de inocência como norma de tratamento – exige que o sujeito seja tratado, pela sociedade, pelo juiz, pelo órgão acusador, etc., como inocente durante toda tramitação do processo acusatório, inclusive e principalmente quando do trâmite dos atos investigatórios preliminares de persecução penal (inquérito penal, v.g.) que tem natureza inquisitória. 

Tal regra de tratamento, portanto, impede que o imputado seja considerado culpado e que sofra os efeitos daí decorrentes até o trânsito em julgado da decisão judicial condenatória. Nesse sentido, leciona Maurício Zanoide de Moraes que

Na cultura da Civil Law, a forma mais tradicional de se compreender a presunção de inocência é considera-la como uma garantia de que o cidadão será tratado na persecução penal como inocente. Isto é, garante-se que os efeitos de uma eventual decisão condenatória somente sejam aplicados após seu trânsito em julgado.

Salienta-se, nesse sentido, que a presunção de inocência como norma de tratamento decorre diretamente dos direitos e garantias processuais do acusado, tais como o devido processo legal, legalidade, imparcialidade, contraditório e ampla defesa, duplo grau de jurisdição, dentre outros, assegurando ao réu o estado de inocente que apenas poderá ser vencido por uma decisão penal condenatória com trânsito em julgado legal e constitucional, ou seja, que tenha respeitado e observado tais princípios supra elencados. 

A regra de tratamento, ainda, exerce efeitos endoprocessual (efeitos internos no processo penal) e exoprocessual (efeitos externos ao processo penal), como elencado pertinentemente por Aury Lopes Junior: 

Na dimensão interna, é um dever de tratamento imposto – primeiramente – ao juiz, determinando que a carga da prova seja inteiramente do acusador (pois, se o réu é inocente, não precisa provar nada) e que a dúvida conduza inexoravelmente à absolvição.; ainda na dimensão interna, implica severas restrições ao (ab)uso das prisões cautelares (como prender alguém que não foi definitivamente condenado?). 

Externamente ao processo, a presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu. Significa dizer que a presunção de inocência (e também as garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade) deve ser utilizada como verdadeiros limites democráticos à abusiva exploração midiática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial. O bizarro espetáculo montado pelo julgamento midiático deve ser coibido pela eficácia da presunção de inocência. 

Verifica-se, portanto, que até mesmo a impossibilidade de prisão cautelar do réu afora das hipóteses legalmente previstas decorre da regra de tratamento inerente à presunção de inocência. 

A segunda das normas – presunção de inocência como norma probatória – determina, tal como o próprio nome sugere, a carga probatória ou de instrução que a prévia condição de inocente atribui ao réu, ou seja, a distribuição do ônus probatório do processo penal entre titular da ação penal acusador e o indivíduo sentado no banco dos réus. 

Como cediço e já deveras difundido no campo das ciências constitucionais e criminais, o ônus probatório na ação penal cabe à acusação, sendo certo que a dúvida deverá beneficiar e confirmar a presunção relativa de inocência do réu, culminando com sua absolvição. 

E esse é um dos pontos pertinentes da presunção de inocência como regra probatória, posto que o estado de inocência é presumido de forma relativa, ou seja, admite-se prova em sentido contrário (condenação) para vencer tal qualidade; que deverá ser produzida pelo órgão acusador, tendo em vista que, na falta de provas, prevalecerá a presunção não ultrapassada. 

Ainda, a produção probatória que não seja cabal, ou seja, que deixe dúvidas sobre a autoria e materialidade do delito e culpa do réu, não vencerá a condição de inocente de tal imputado. 

O artigo 156 do Código de Processo Penal dispõe acerca do ônus probatório e, segundo a maioria da doutrina, estabelece que caberá ao titular da ação penal provar a existência e a sua autoria, enquanto à defesa caberá demonstrar as causas de exclusão de ilicitude e da culpabilidade.

Ressalta-se, ademais, que a produção probatória por parte do titular da ação penal não é desmedida, tampouco incondicionada, na medida em que a prova a ser produzida deverá ser lícita e constitucional, respeitando os preceitos dispostos na legislação de referência e na Constituição Federal. 

Por fim, a presunção de inocência como regra de juízo se verifica em momento posterior à ocorrência da presunção de inocência como norma-regra de instrução ou probatória, posto que aquela incide em todos os atos decisórios que decorram da análise do material probatório pelo juízo, ou seja, a observância da condição de inocente quando da formação da convicção do juiz em sua fundamentação.

Assim, a presunção de inocência como norma de juízo é pautada no princípio do in dubio pro reo, posto que o juízo, quando da fundamentação de seus atos decisórios, deverá analisar a instrução probatória e demonstrar o lastro mínimo probatório necessário para afastar o direito fundamental à presunção de inocência, visando evitar, dessa forma, influências externas ao processo, estranhas à causa e por essa razão, inconstitucionais.

 A fundamentação ou motivação do órgão julgador consiste no elemento fundamental para o respeito dos direitos e garantias fundamentais do imputado, notadamente o princípio-direito-garantia fundamental à presunção de inocência (funcionando como norma de juízo), eis que exerce função de controle da discricionariedade e inquisitoriedade das decisões penais.

Em conclusão à análise da presunção de inocência como normas-regras, tendo em vista sua aplicação e efeitos práticos na persecução penal – compreendido pelas investigações preliminares e o processo penal -, Paulo Saint Pastous Caleffi estabelece que:

(...) desde os primeiros momentos da investigação preliminar, havendo um juízo de atribuição de conduta criminosa a alguém, o princípio da presunção de inocência protegerá o imputado com toda a amplitude exigida pela Constituição, seja como “norma de tratamento”, “norma probatória” ou “norma de juízo” (ou também como “regra de fechamento”) assegurando que tão importante garantia se torne mera retórica em nosso cotidiano jurídico.

Referências:

MORAES, Maurício Zanoide. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Editora Lumen Iuris, 2010, p. 427.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 191-192.

Art. 156.  A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. 

Vide por todos: CALEFFI, Paulo Saint Pastous. Presunção de Inocência e execução provisória da pena no Brasil: uma análise crítica e impactos na oscilação jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017

CALEFFI, Paulo Saint Pastous. Presunção de Inocência e execução provisória da pena no Brasil: uma análise crítica e impactos na oscilação jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

CALEFFI, Paulo Saint Pastous. Presunção de Inocência e execução provisória da pena no Brasil: uma análise crítica e impactos na oscilação jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 49.