Presunção de Inocência: Evolução como Princípio e Garantia Fundamental

Neste artigo da série sobre presunção de inocência, vamos abordar o contexto histórico da evolução da presunção de inocência, bem como sua incidência nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos.

Inicialmente, vamos realizar uma síntese da evolução histórica de tal direito, apontando o seu surgimento e desenvolvimento nos diversos sistemas e diplomas jurídicos alienígenas. 

Há divergências nos estudos doutrinários acerca da origem e dos primeiros preceitos da presunção de inocência, intrinsecamente relacionada ao devido processo legal, defendendo, alguns doutrinadores, que teve origem na Grécia antiga, assim como no direito Romano.

Nesse mesmo sentido, Luigi Ferrajoli advoga no sentido que o princípio da presunção de inocência remonta ao direito romano, tendo sido afastado, contudo, pelo caráter inquisidor das investigações ocorridas durante a Idade Média, em suas palavras:

Apesar de remontar ao direito romano, o princípio da presunção de inocência até a prova em contrário foi ofuscado, se não completamente invertido, pelas práticas inquisitórias na Baixa Idade Média. Basta recordar que no processo penal medieval a insuficiência de prova, conquanto deixasse subsistir uma suspeita ou uma dúvida de culpabilidade, equivalia a uma semiprova, que comportava um juízo de semiculpabilidade e uma semicondenação a uma pena mais leve.

Ainda de forma minoritária, Canotilho defende que o primeiro instrumento normativo que previu a garantia da presunção de inocência aos penalmente imputados foi a Carta Magna de 1215 do Rei João Sem-Terra da Inglaterra, em vista de conceder pioneira e expressamente direitos e garantias ao “povo”, ainda que aristocraticamente, tal como a proibição de aplicação de penas e julgamentos de acordo com as leis e o ordenamento vigente à época. 

Nesse contexto, o entendimento majoritário na doutrina defende que o princípio da presunção de inocência, da forma que é entendida atualmente, teve origem na Revolução Francesa, tendo como marco a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 na qual previa, em seu art. 9º, que: “Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei”. 

Como se depreende do disposto na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, já no século XVIII previu-se uma regra processual de presunção de inocência do acusado até que este seja declarado culpado, bem assim estabelece uma norma de tratamento, posto que não poderia ser submetido à prisões ou reprimendas enquanto ostentasse a qualidade de presumidamente inocente. 

Tal brocardo, ainda, rompeu com a até então vigente regra da presunção da culpabilidade do imputado em que este deveria comprovar sua inocência. Assim, outro aspecto processual trazido pela nova positivação internacional acerca da presunção de inocência operou outra regra processual distinta ao modelo anterior, invertendo o ônus da prova da culpabilidade do investigado para a acusação, não mais pertencendo ao próprio acusado. 

Em razão das duas grandes guerras mundiais, surge, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem da Organização das Nações Unidas – ONU, estabelecendo em seu art. 11.1 que “toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.

Quanto aos dois documentos internacionais, asseverou Batisti:

Houve alteração na apresentação da presunção de inocência entre 1789 e 1948. A Declaração de 1789 centrou a presunção de inocência na punição do rigor desnecessário, mantendo um isolamento referencial do princípio, enquanto que, na Declaração de 1948, o princípio se fez acompanhar de um parâmetro temporal e de duas especificidades que antes dizem respeito ao processo do que ao princípio de inocência. Pode-se dizer que a presunção de inocência, como equilíbrio entre a garantia social e liberdade individual assumiu logo o que veio a ser reconhecido como princípio político do processo.

Verifica-se, já neste momento, que os movimentos sociais e fatos históricos influem diretamente na positivação do Direito, em âmbito internacional e interno, e nas garantias individuais e coletivas dos cidadãos. Assim, resta indubitável os reflexos externos da dinâmica social no direito, sendo a recíproca verdadeira, em vista das consequências que imergem da aplicação e interpretação do Direito no caso em concreto.

Após a Declaração Universal da ONU, diversos outros diplomas internacionais abarcaram uma definição semelhante sobre o princípio da presunção de inocência e, consequentemente, não exigiam o trânsito em julgado da sentença condenatória para a comprovação da culpabilidade e possibilidade de cumprimento de pena, tal como a Convenção Europeia, o Pacto Internacional sobre Direitos Civil e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. 

Nesse contexto, muito embora o princípio da presunção de inocência não implique necessariamente o trânsito em julgado da sentença condenatória, verifica-se a relação dicotômica do direito penal e processual penal como direito e garantia ao acusado de um processo penal justo, previamente estabelecido e que garante a ampla defesa e contraditório, e como o instrumento do exercício do ius puniendi do Estado, visando a garantia da paz social e dos direitos fundamentais da sociedade.  

Assim, a título exemplificativo, a Convenção Europeia de Direitos Humanos, datada de 1950, teve a presunção de inocência como cânone e princípio basilar, nos termos do art. 6.2 que elencava que “qualquer pessoa acusada de uma infração se presume inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada”.

Por conseguinte, no ano de 1969, fora subscrita a Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, que estabeleceu, em seu art. 8.2, o mesmo princípio da inocência, ipsis litteris: “toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma a sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”. 

Especialmente no que tange à Convenção Americana de Direitos Humanos, registra-se que esta fora ratificada e promulgada pelo Brasil em 1992, através do Decreto Legislativo nº. 27 e do Decreto Executivo nº. 678, levando-se à efeito a atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca do status supralegal dos tratados internacionais de Direitos Humanos internalizados antes da Emenda Constitucional 45/2004 - hierarquicamente superior à legislação infraconstitucional e abaixo da Constituição Federal - os quais não foram aprovados com o mesmo quórum especial de aprovação de Emendas à Constituição. 

Dessa forma, o Brasil assumiu a obrigação – internacional – de promover um sistema criminal pautado no princípio da presunção de inocência, muito embora já estivesse expresso no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988, exercendo, portanto, efeito paralisante aos Poderes, Poder Público e particulares, no sentido de impedir limitações ao compromisso assumido perante a humanidade. 

Referências:

MORAES, Maurício Zanoide. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Editora Lumen Iuris, 2010

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 6ª Ed. Trad.: Ana Paula Zomer Sica et. al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pg. 441.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

PAULINO, Galtiênio da Cruz. A execução provisória da pena e o princípio da presunção de inocência. in Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 16 – n. 50, p. 207-232 – jul./dez. 2017.

CALEFFI, Paulo Saint Pastous. Presunção de Inocência e execução provisória da pena no Brasil: uma análise crítica e impactos na oscilação jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

DECLARAÇÃO dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, artigo 9º. Versão eletrônica para acesso digital disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html>. Acesso em: 30 jul. 2018.

BARBAGALO, Fernando Brandini. Presunção de Inocência e recursos criminais excepcionais: em busca da racionalidade no sistema processual penal brasileiro. E-book. Dados Eletrônicos – Brasília: TJDFT, 2015. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/institucional/escola-de-administracao-judiciaria/plano-instrucional/e-books/e-books-pdf/presuncao-de-inocencia-e-recursos-criminais-excepcionais>. Acesso em 30 jul. 2018.

BATISTI, Leonir. Presunção de inocência: apreciação dogmática e nos instrumentos internacionais e Constituições do Brasil e Portugal. Curitiba: Juruá, 2009, pg. 34.

PAULINO, Galtiênio da Cruz. A execução provisória da pena e o princípio da presunção de inocência. in Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 16 – n. 50, p. 207-232 – jul./dez. 2017.

CALEFFI, Paulo Saint Pastous. Presunção de Inocência e execução provisória da pena no Brasil: uma análise crítica e impactos na oscilação jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 22.