Na última quinta-feira (21), o Supremo Tribunal Federal (STF) não aprovou a tese do marco temporal para demarcar terras indígenas. Com diferença de sete votos, o Plenário determinou que a data da promulgação da Constituição Federal não pode ser utilizada para a definição da ocupação da terras pelas comunidades.
A decisão ocorreu no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral (Tema 1.031).
Iniciado em agosto de 2021, se estendendo por 11 sessões, sendo as seis primeiras por meio de videoconferências e duas exclusivamente dedicadas a 38 manifestações das partes processuais, de terceiros interessados, do advogado-geral da União e do procurador-geral da República, o julgamento é um dos maiores da história do Supremo.
Representantes dos povos indígenas acompanharam a sessão no Plenário do STF em uma tenda construída no estacionamento ao lado do Tribunal. O ministro Luiz Fux foi o sexto a votar contra a tese do marco temporal. Após o voto, foram realizados cantos e danças, para comemorar à formação da maioria.
O ministro alegou que, ao se falar de terras tradicionalmente indígenas, a Constituição faz referência às áreas ocupadas e aquelas que ainda possuem vínculo com a ancestralidade e a tradição dos povos. Salientou que, mesmo que não estejam demarcadas, devem ser objeto da proteção constitucional.
A ministra Cármen Lúcia ressaltou, em seu voto, que, ao traçar o estatuto dos povos indígenas, a Constituição Federal garante expressamente a manutenção da organização social, costumes, línguas, tradições, crenças, e direitos sobre as terras tradicionalmente ocupadas. Para ela, a posse da terra não deve ser desmembrada dos demais direitos fundamentais assegurados aos povos e, ainda, que o julgamento diz respeito à dignidade étnica de um povo oprimido e dizimado por quinhentos anos.
Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes seguiu com o afastamento da tese do marco temporal, uma vez que garantida a indenização aos ocupantes de boa-fé, tanto quanto à terra nua. Ele alegou que o conceito de terras tradicionalmente indígenas, que limita demarcações, deve estar de acordo e atender a todos os critérios estabelecidos pela Constituição.
A ministra Rosa Weber foi a última a votar, e afirmou que a posse de terras pelos povos indígenas se relaciona não com a posse imemorial, mas sim com a tradição, explicando que os direitos dos povos sobre as terras ocupadas são fundamentais e não podem ser mitigados.
Ressaltou que a posse tradicional não tem fim na posse atual ou física das terras, relembrando que a legislação do Brasil trata tradicionalmente de posses indígenas sob a perspectiva do indigenato, de que esse direito antecede a criação do do Estado brasileiro.
O caso julgado trata de um pedido do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) para a reintegração da posse de uma área situada em uma parte da Reserva Biológica do Sassafrás (SC), a qual foi declarada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) como de ocupação tradicionalmente indígena.
A Funai contestou, no recurso, a decisão do Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4), por não ter sido demonstrada a ocupação indígena das terras, confirmando que a reintegração de posse havia sido determinada.
Na resolução do caso, o entendimento prevalecente foi o do ministro relator Edson Fachin, que deu provimento ao recurso, sendo, assim, anulada a decisão do TRF4, que não considerava a preexistência do direito originário sobre as determinadas terras e validava o título de domínio, não proporcionando a demonstração da melhor posse à Funai e à comunidade indígena.
O que é Marco Temporal?
O marco temporal se dá por uma tese jurídica debatida há mais de 10 anos, em que os povos indígenas possuem o direito de ocupação somente de terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data em que fui promulgada a Constituição Federal. A tese integra grupos de agricultores e ruralistas que não defendem a ideia de que os povos indígenas possam reivindicar as terras somente quando já estivessem nela na data da promulgação da Constituição Federal, visando a barragem das demarcações de terras no território brasileiro. Não havendo comprovações sobre a ocupação ou disputa judicial pela terra, os povos podem perder o direito sobre elas, sendo expulsos.
A tese reforça a rivalidade entre os povos indígenas e os ruralistas e, caso fosse aprovado, o marco temporal poderia resultar na expulsão dos povos de suas terras.
A disputa se iniciou com um parecer emitido pela Advocacia Geral da União (AGU), que estabeleceu diversas restrições para a demarcações das terras indígenas, sendo uma delas a imposição do marco temporal. A partir disso, a tese do marco temporal passou a ser utilizada para impedir novas demarcações da terras indígenas.
Utilizada pela primeira vez em 2009, a tese repercutiu quando o Supremo Tribunal Federal (STF) se valeu dela em um julgamento que estabelecia a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, localizada em Roraima. No entanto, o Supremo reconheceu que a aplicação da tese no julgamento só valia para aquele caso em específico.
Ainda assim, a tese foi explorada por outros agricultores e ruralistas, visando o impedimento das demarcações de novas terras pertencentes aos indígenas.
No mesmo ano, mais uma disputa por terra entre indígenas e agricultores foi iniciada entre os Xoklengs, povo indígena do estado de Santa Catarina, e a Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (Fatma), influenciando diretamente no atual julgamento em curso no Supremo.
No conflito, a Fundação requeria a reintegração de posse de uma terra de aproximadamente 80 mil metros quadrados, ocupada pelos Xokleng, Kaingang e Guarani. O local fazia da terra indígena Ibirama Laklãnõ, oficialmente criada em 2003, mas que tem plantações de fumo atualmente estabelecidas por agricultores.
O governo de Santa Catarina afirmou que a terra não havia sido ocupada pelos Xokleng na promulgação da Constituição Federal de 1988. Em contrapartida, os Xokleng alegaram que o território era ocupado por eles historicamente por conta da perseguição dos colonos europeus, que se estabeleciam ali, pelos povos indígenas, na primeira metade do século XX.
O simbolismo do caso dos xokleng para o debate do marco temporal se dá pois, em 2019, o ministro Alexandre de Moraes estabeleceu que a decisão que envolvia o caso serviria como base para todas as demais ações que envolvessem o tema.