Tratamento de Saúde no Brasil e a Autonomia Jurídica do Paciente

As condições materiais para a garantia da existência humana, os limites estabelecidos pela Ciência no processo de cura e a declaração de vontade — livre e consciente — do paciente acerca do próprio corpo, no tratamento de patologias de diversas ordens, são temas intrinsicamente ligados ao exame da juridicidade da autonomia privada do paciente, seus limites e condicionantes, de acordo com o ordenamento jurídico vigente em cada país. Analisar a autonomia privada do paciente nos tratamentos médico-hospitalares impõe examinar o direito à vida humana nas suas múltiplas vertentes.

Nessa temática, o direito da personalidade se sobreleva, já que a autonomia privada do paciente redundará no direito à preservação da vida humana, cujo titular tem personalidade jurídica. No mesmo grau de importância, o biodireito e a bioética serão destacados para aferir a legitimidade do conteúdo da autonomia, que denominamos “autonomia existencial”.  

A autonomia do paciente no Direito contemporâneo implicará no estabelecimento de limites impostos aos profissionais da saúde quanto ao exercício do ato médico, ainda que não existam diretivas antecipadas da vontade, procurador previamente nomeado para decisões dessa natureza ou “testamento” vital. Há situações especiais que demandarão maior esforço do exegeta na sistematização de uma uniformização de entendimento. Referimo-nos aos casos dos menores de idade, na clássica dicotomia dos menores impúberes e dos menores púberes, da senilidade, das pessoas com deficiência, das emergências hospitalares e das doenças consideradas incuráveis, segundo a Ciência. O direito comparado será de extrema importância para o deslinde de questões complexas, considerando os avanços humanitários e as diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS), como organismo internacional de direitos humanos vinculado à Ciência com vistas à preservação da vida humana. 

Sabemos que o tema Mistanásia é aplicado à realidade brasileira diante da absurda desigualdade social que assola nosso país há décadas, agravado, como em qualquer parte do continente, com a Pandemia de Covid 19. Relembre-se que mistanásia é a “morte social”, a morte absolutamente previsível e desnecessária face a exclusão de grupos sociais desprovidos do mínimo existencial. Em outras palavras, refiro-me à escassez de insumos mínimos para prover hospitais públicos, de médicos suficientes para o atendimento da população de baixa renda, de leitos disponíveis, de remédios, de tratamento de saúde continuado, e garantido pelo Poder Público, de segurança alimentar!

Qual o limite outorgado ao profissional da saúde para desligar um aparelho sob o manto da distanásia, que é o prolongamento desnecessário da vida, sob o argumento de que o tratamento é fútil? Ainda permaneceremos com os casuísmos, sempre caso a caso e sob a proteção de quatro paredes para decisões sobre finitude humana? Penso que esse assunto é seríssimo e está próximo de todos nós, já que a morte é um assunto sempre doloroso, mas que é necessário ser debatido.

Por outro lado, é absolutamente precipitado se afirmar que, sob o manto sagrado dos direitos da personalidade, da tão sonhada autonomia existencial, o direito de ser o que quiser, ser senhor do próprio destino, o paciente terá a lucidez e sabedoria própria para negar um tratamento considerado imprescindível à sua saúde, que lhe garanta, inclusive, a vida.

Precisamos ter uma rede de apoio efetiva e desvinculada da rede primária, dos cuidadores de saúde (médicos, enfermeiras e respectivos auxiliares) não só para os cuidados paliativos, que são considerados ainda uma novidade por aqui, mas também que para orientação para todos os vieses do poder de escolha do paciente, não se resumindo o que na prática se observa quanto a aconselhamentos puramente relacionados a concessão de benefícios previdenciários, com raras exceções. 

Admitir essa autonomia do paciente nos moldes de um país com alto nível de mistanásia, de ausência de rede para cuidados paliativos, de distanásia, aplicada caso a caso e, para finalizar, sem rede secundária de apoio para orientar escolhas que impliquem em terminalidade, com todo as VENIAS possíveis, é uma temeridade e se aproxima da admissão da eutanásia no Brasil, cuja pauta já está no STF para que seja julgada a constitucionalidade da Resolução n. 2232, de 2019. Sem o imprescindível debate civil, incorreremos em graves riscos para o desacerto de uma decisão judicial erga omnes no valor mais caro ao humano: a vida humana!