Diferentes investigações têm abordado o fenômeno de mercantilização da água potável originado de correntes intelectuais neoclássicas. Assim, sob o mesmo contexto de tendências privatistas que se deu no Brasil na década de 1990, com a promoção das políticas públicas realizadas por organismos internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), é possível compreender que tal período instituiu nas grandes cidades da América Latina a participação de empresas privadas constituídas por capital estrangeiro na operacionalização de serviços urbanos. A justificativa já apaziguada no cenário global importava em atribuir maior modernização do setor de infraestrutura e tratamento de água, através de novas políticas tarifárias, como é o caso das cidades de Buenos Aires, La Paz e México, que seguindo as experiências francesas e inglesas por delegação ou privatização dos serviços, apresentaram trajetórias altamente variáveis. Cabe ressaltar que dentre as opções, também se destacou a adoção das formas híbridas de gestão dos serviços, levando em consideração seus respectivos contextos políticos, jurídicos, econômicos e de resistência local.
Importante pontuar que a universalização do acesso à água não estava presente nos objetivos da privatização, que priorizaram o aumento da cobertura dos serviços e o melhoramento da eficiência destes, mais particularmente o saneamento, por meio do seu autofinanciamento. Desta forma, o benefício muitas vezes ficou restrito aos espaços urbanos privilegiados, enquanto os grupos mais pobres continuaram sem acesso (BASCANS, 2022, p. 2). Quanto às consequências observadas, é possível descrever o aumento das taxas, o aumento da desigualdade no acesso aos serviços e as quebras de contratos estabelecidos (SCHNEIER- MADANES, 2010; POUPEAU, 2019a; 2019b apud BASCANS, 2022, p. 3).
No Uruguai, a empresa pública de água potável e saneamento OSE, foi um legado do estado de bem-estar social promovido em meados do século XX no país. Criado em 1952, o período retratava o fortalecimento do Estado por meio da criação de empresas estatais tanto com objetivos sociais, quanto de promoção e desenvolvimento. Portanto, o financiamento e a prestação de serviços de água e saneamento básico no Uruguai foram baseados no sistema intitulado por “subsídios cruzados”, ou seja, o excedente do que foi arrecadado pela empresa pública em áreas mais lucrativas, colaboram compensando o déficit nas áreas menos povoadas e não lucrativas. Entretanto, tais mecanismos foram enfraquecidos com o advento da “privatização”. O processo de privatização dos serviços de água uruguaios teve início na década de 90 com a presidência de Luis Alberto Lacalle, do Partido Nacional, que optou pela adoção de medidas que defendiam a descentralização, desregulamentação e privatização das empresas estatais. Contudo, devido às intensas mobilizações da população contra as medidas privatistas, o governo assumiu uma forma institucional, por meio da concessão, a execução de obras públicas e a prestação de serviços de saneamento e abastecimento de água potável (BASCANS, 2022).
Apesar da privatização no país ter sido oficialmente justificada pela indispensabilidade do aumento da cobertura do serviço, foi constatado que no período das tratativas, a expansão urbana mal refreada provocou grande impacto para o turismo da região local e logo, para a economia, devido ao fato de que estava havendo uma grande poluição nas praias de Punta Del Leste, que é uma área particularmente turística, e que compreende uma população de alto poder aquisitivo, que vive em residências luxuosas ou localizadas em bairros nobres, se tratando, portanto, de uma espaço rentável para investimentos. Assim, a privatização dos serviços se apresentou como uma solução aos problemas locais que são distintos dos oficialmente divulgados, tendo em vista que 97% da população urbana já possuía acesso aos serviços de saneamento (BASCANS, 2022, p. 5).
Dentre os efeitos experimentados no Uruguai, é possível identificar que os investimentos prometidos para o aumento da rede de saneamento não foram realizados pela empresa ARAGUA, uma vez que a infraestrutura utilizada havia sido implementada pela OSE, além de terem sido identificados diversos incidentes como o aumento do preço da água, a exposição da população vulnerável economicamente que enfrentou cortes e desconexões de água, a retirada dos hidrantes utilizados por moradores sem ligação domiciliar para forçar à população a ser conectar às redes, para além dos problemas de escoamento de águas residuais no município de Manantiales e de despejo de águas residuais em rios, como foi o caso da empresa Aguas de la Costa, multada em US$10.000 após derramamento no leito do rio Maldonado (SANTOS et al., 2006 apud BASCANS, 2022, p. 7).
Com esse conjunto de fatores, a população iniciou uma forte mobilização e, apesar desses movimentos não terem sido capazes de impedir a privatização, realizada no Departamento de Maldonado, reuniu uma série de ações judiciais e de mobilização política para que houvesse a reestatização. A partir dos anos 2000, as mobilizações até então locais ecoaram a nível nacional, resultando no reconhecimento Constitucional do direito humano à água e na reestatização do serviço, que foi impulsionado pela vitória eleitoral da Frente Ampla. O retorno à gestão pública gerou diversos efeitos positivos, como a redução do preço da água, a melhora da qualidade do serviço, e a ampliação do acesso à população de baixa renda que foram obrigadas a se desligarem do fornecimento de água devido à impossibilidade de pagamento, não sendo possível entretanto, que a gestão dos serviços voltassem à situação anterior, tendo em vista a resiliência neoliberal no setor, uma vez que tanto o marco regulatório quanto as modalidades de operação desses serviços no Uruguai não apresentam diferenças substanciais dos países que possuem seus serviços privatizados.
De um lado o consórcio multinacional Águas de la Costa foi substituído por uma empresa mista de capital privado até 2019, apesar da reforma constitucional, por outro lado foi observado que nos locais em que houve as concessões, o serviço é explorado pela UGD, estrutura pública de direito privado, que apresentam profunda contradição com o sistema de subsídios cruzados. Por fim, infere-se que a reestatização no Uruguai conseguiu reestabelecer a satisfação da população sem questionar a estrutura econômica e a impregnação do neoliberalismo no Estado (BASCANS, 2022, p. 13).