2.4 A História do Saneamento Básico no Brasil no Século XX

Sob herança do modelo de financiamento adotado em meados de 1970 e desenvolvido a partir da década de 1990, o Brasil foi acometido por uma intensificação no incentivo da privatização nos setores de saneamento básico, com intuito de que o setor viesse a receber maiores investimentos e fosse capaz de melhorar a qualidade e eficiência dos seus serviços (CABRAL; RODRIGUES, 2018, p. 811). Após aproximadamente vinte anos de gestão centralizada durante o regime militar, o modelo de organização e gerenciamento dos serviços de esgotamento sanitário e abastecimento de água das cidades brasileiras, que até então passava por uma fase de indefinição da Política Nacional de Saneamento, buscou se reestruturar sob o avanço das políticas de descentralização, por meio da regulação do setor, que contou com mudanças no ordenamento jurídico e administrativo e que tiveram maior impulso diante do Governo do 34º Presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso (FHC), cujo mandato ocorreu de 1995 a 2003. Durante o Governo, o então presidente apresentou como contrapartida ao Banco Mundial seu comprometimento com a privatização das empresas estaduais de saneamento básico, em razão do empréstimo tomado para suprir a crise de 1998, criando o Programa de Financiamento a Concessionários Privados de Saneamento (FCP/SAN) que autorizava o uso dos recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) pela iniciativa privada, enquanto se esgotava a oferta de recursos às prestadoras estaduais, que se viram impedidas de acessar os recursos de FGTS destinados ao setor (VARGAS; LIMA, 2004, p. 70).

Importante mencionar que as ações que tinham por objetivo a venda das companhias estaduais foram enfraquecidas diante da resistência dos partidos de oposição e da opinião pública desfavorável quanto ao tema, de modo que, apenas alguns estados do Sul e Sudeste conseguiram prosseguir com as propostas privatistas, adotando a estratégia de abertura de capital nas bolsas de valores. Dentre os estados observados nas condições descritas anteriormente, é preciso destacar Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e São Paulo, cujos Governantes e gestores buscaram legitimidade em discursos técnicos para a necessidade da oferta pública de ações no mercado. Entre as fundamentações apresentadas, destacaram-se a “maior capitalização e o aumento da profissionalização, do planejamento, da transparência, da cobertura das redes e da qualidade dos serviços prestados”, não havendo, todavia, o respaldo pacificado entre os especialistas da área (OLIVEIRA; LIMA, 2015, p. 254).

Como consequência das reformas liberais dos anos de 1990, houve agravo significativo na desigualdade social e na pobreza em toda a América Latina, cujo ciclo foi interrompido no Brasil, através da vitória do Partido dos Trabalhadores que retomou o investimento público no país com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (SOUSA, 2022, p. 450), ao passo em que este também se mostrava favorável ao aumento da participação privada no setor de infraestrutura e logo, no de saneamento básico, especialmente nos moldes de Parceria Público-Privada (PPP). Neste sentido, importa asseverar que a transição de gestão centralizada para um mercado regulado não foi descontinuada ou totalmente revertida, pois a própria estrutura econômica e institucional do país sofre constrangimentos que impedem a formulação de uma política nacional de saneamento dirigida e integrada pelo governo central e que depende exclusivamente de investimentos públicos (VARGAS; LIMA, 2004, p. 69). É importante ressaltar que a realidade histórica brasileira indica grande insuficiência no setor, o que significa que o país precisaria de que mais esforços fossem direcionados a fim de que a universalização dos serviços pudesse ser alcançada, uma vez que os valores investidos anualmente no setor por parte do Governo têm sido aproximadamente um terço do montante necessário para atingir a universalização dos serviços, estimado em R$ 13,5 bilhões por ano, durante 20 anos (SCRIPTORE; TONETO JÚNIOR, 2015, p. 1480).

Cabe mencionar ainda, que um dos principais pontos discutidos entre a privatização ou a estatização dos serviços públicos versa sobre as diferentes abordagens de gestão organizacional e orçamentária, pois do ponto de vista teórico, os serviços públicos tendem a satisfazer os objetivos de natureza social com maior facilidade, mas expostos a interferências políticas, enquanto os operadores privados, conforme sua própria natureza, apresentam visão empresarial, podendo estabelecer uma eficiência superior aos seus processos operacionais com intuito de maximizar os seus próprios lucros (BORRAZ; PAMPILLON; OLARREAGA, 2013 apud CABRAL; RODRIGUES; FONSECA, 2018, p. 811).

A importância de um setor estruturado de saneamento básico representa para o Estado a garantia dos fundamentos do estado democrático de Direito, apresentando como fundamento basilar da República o princípio da dignidade da pessoa humana, que possui previsão no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988. Acerca dessa abordagem resta imprescindível pontuar que em julho de 2022, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), aprovou por unanimidade a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 2/2016, com objetivo alterar o artigo 6º da Carta Magna a fim de tornar o saneamento básico um direito social, equiparando-o aos direitos de moradia, alimentação, educação, saúde, trabalho, lazer, previdência social e segurança.

De acordo com o relator da PEC 2/2016, o senador Rogério Carvalho (PT-SE):

“O direito social ao saneamento básico relaciona-se diretamente com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e com os direitos fundamentais à vida, à saúde, à alimentação e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. A ‘sadia qualidade de vida’ prevista no art. 225 da Carta Magna depende da implementação e adequada gestão dos serviços de saneamento básico” (AGÊNCIA SENADO, 2022).

Diante desta abordagem legal, que tem por objetivo a reafirmação de que tal atividade é estratégica ao desenvolvimento nacional e de direito social na qual o Estado tem o dever de assegurar a todo cidadão do país, cabe elucidar as conclusões doutrinárias acerca da “privatização” dos sistemas de saneamento. Enquanto parte da doutrina constatou que a descentralização do setor provocou a redução da mortalidade infantil por doenças infecciosas e parasitárias em razão da elevação da quantidade de água oferecida para a população carente nas localidades, representando resultado contrário ao que se esperava, de que os ganhos adquiridos por meio da desestatização seriam absorvidos pelas empresas ou direcionados apenas às elites, outra parte da doutrina entendeu que os efeitos da desestatização prevaleceram abaixo das expectativas na maioria das experiências nacionais e internacionais que possuíam atuação privada no setor de saneamento, embora houvesse reconhecimento de melhoria pontual em poucos indicadores econômicos e operacionais. De acordo com este grupo, ainda que transcorressem investimentos oriundos de grupos privados, estes contaram com subsídios governamentais, havendo priorização do abastecimento d’água em detrimento do esgotamento sanitário (OLIVEIRA; LIMA, 2015, p. 254).

Ainda, é possível cientificar outros problemas acometidos pelos operadores privados, como a falta de concorrência, a pouca transparência com os usuários, a dificuldade na revogação de acordos insatisfatórios, os casos de corrupção, a precarização das relações trabalhistas e o descumprimento das metas traçadas pela concedente, devido ao fato de que as necessidades dos usuários sistematicamente se demonstravam contrárias aos princípios de viabilidade 1 e eficiência mercantil.

Neste sentido, é preciso identificar de que forma os estados brasileiros têm se posicionado em relação a grande tendência de desestatização no país, mais especificamente os que compõem a região sudeste, tendo em vista que estiveram suscetíveis ao prosseguimento das propostas privatistas e quais as suas respectivas experiências quando do processo de pós- desestatização. Para isso, cumpre-nos esclarecer os fundamentos legais, tal como o novo marco legal do saneamento básico, instituído em abril de 2023.