Qualquer postura assumida pelo STF está acompanhada de algum cálculo político (“A Corte vem demonstrando, ao longo dos últimos vinte anos, uma tendência cooperativa com os interesses do poder Executivo, quando acionada pelos mecanismos de controle de constitucionalidade (revisão judicial), seja confirmando a constitucionalidade da legislação, seja ainda simplesmente deixando informalmente de julgar um grande número de conflitos.” (GOMES NETO; FEITOSA; DOS SANTOS FILHO; PACÍFICO. Litígios Esquecidos: Análise empírica dos processos de controle concentrado de constitucionalidade aguardando julgamento, 2017, p. 75)), de forma que os julgamentos não são proferidos somente com a intenção de declarar a constitucionalidade de determinada legislação, por exemplo.
O Supremo não apenas vem exercendo a função de órgão de proteção de regras constitucionais, face aos potenciais ataques ao sistema político, como também vem exercendo, ainda que subsidiariamente, a função de criação de regras; logo, o Supremo estaria acumulando exercício de autoridade, inerente a qualquer intérprete constitucional, com exercício de poder. (VIEIRA, 2008, p. 445-446)
Em nosso cenário, povoado por instituições e procedimentos imperfeitos, a jurisdição constitucional desempenha um papel altamente relevante. Em geral, o STF vem, pelo menos ao longo da última década, desempenhando razoavelmente bem este papel. Porém, a jurisdição constitucional não é e não deve ser concebida como a protagonista da narrativa constitucional da Nação. A Constituição é interpretada e concretizada também fora das cortes, e o seu sentido é produzido por meio de debates e interações que ocorrem nos mais diferentes campos em que se dá o exercício da cidadania. (SARMENTO; SOUZA NETO, 2013, p. 159-160)
Justamente por serem proferidos pela maior instância do Judiciário brasileiro, não há decisão que não carregue efeitos significativos para a harmonia entre as instituições jurídicas e os Poderes políticos (“O STF está hoje no centro do nosso sistema político, fato que demonstra a fragilidade do nosso sistema representativo. Tal tribunal vem exercendo, ainda que subsidiariamente, o papel de criador de regras, acumulando a autoridade de intérprete da Constituição com o exercício do poder legislativo, tradicionalmente exercido por poderes representativos.” (VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia, 2008, p. 441)), sendo favoráveis ou não ao requerido na propositura da ação, cada sentença detém seu caráter denominador que influencia partidos políticos ou grupos econômicos, seja isso positivo ou negativo para tal dinâmica (“É possível esboçar uma concepção inicial de autorrestrição, representada, de acordo com Richard Posner (2012), pros três significados principais: (I) a noção de que os juízes são aplicadores do direito, mas não o produzem (perspectiva legalista-formalista); (II) a necessidade de deferência a outros agentes políticos (modéstia, competência institucional e outros); (III) a perspectiva de juízes altamente relutantes em declarar inconstitucionais atos do legislativo e executivo.” (GOMES NETO, José Mário Wanderley; LIMA, Flávia Danielle Santiago. Explorando “o maravilhoso mistério do tempo”: as hipóteses de “perda de objeto” como evidências de virtudes passivas na suprema corte brasileira, 2016, p. 7)).
O estudo da trajetória do sistema de revisão judicial no Brasil tem mostrado a forma como a Corte suprema tem atuado, seja de forma ativista ou autorrestritiva: há judicialização da política sempre que os tribunais, no desempenho normal de suas funções, influenciam de modo significativo as condições da ação política. Nesse sentido, o Poder Judiciário, de acordo com a situação apresentada, passa a exercer com maior frequência as suas funções atípicas (ativismo) ou deliberadamente escolhe não exercê-las (autorrestrição). (GOMES NETO; FEITOSA; DOS SANTOS FILHO; PACÍFICO, 2017, p. 79-80)
A possibilidade jurídica deve ser acompanhada pela disposição dos atores políticos em utilizar os procedimentos judiciais para firmar seus interesses. Para que isso ocorra, as oposições e demais grupos de interesse devem vislumbrar vantagens nesse encaminhamento, seja para obter o efetivo reconhecimento dos direitos defendidos em detrimento da vontade da maioria, seja pela mera possibilidade de obstruir determinadas políticas governamentais. Mas as regras do jogo político devem guardar relação com as normas, que amparam interesses jurídicos. (LIMA, 2013, p. 112)
A jurisdição constitucional possibilitou que o Supremo ocupasse tal posição de destaque, exatamente por isso que o controle de constitucionalidade, mesmo com um julgamento autocontido, se torna uma atividade de extrema cautela, isso também, em razão dos personagens que ocupam esse espaço público, como os ministros e os representantes políticos, por exemplo.
Por isso, o debate acerca da “dificuldade contramajoritária” mantem-se latente dentro do ordenamento jurídico, tendo em vista que a discricionariedade dos magistrados se transforma em norma constitucional, em razão de as mesmas serem abertas e complexas, o que configura o fenômeno da constitucionalização do direito (“A hiper-constitucionalização da vida contemporânea, no entanto, é consequência da desconfiança na democracia e não a sua causa. Porém, uma vez realizada a opção institucional de ampliação do escopo das constituições e de reforço do papel do judiciário, como guardião dos compromissos constitucionais, isto evidentemente contribuirá para o amesquinhamento do sistema representativo.” (VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia, 2008, p. 443)), por meio da atuação e da não-atuação do Judiciário. A partir disso, o exercício do controle de constitucionalidade permite aos magistrados um poder constituinte permanente por meio do caráter vinculante atribuído às sentenças proferidas pelo STF.
A caracterização da revisão judicial como uma força “contramajoritária” constitui-se num dos mais poderosos argumentos teóricos contrário à atuação das cortes. E, à primeira impressão, a união desses argumentos com a possibilidade de exercício das “virtudes passivas” – que implicam na não atuação judicial – parece invocar um libelo contra a fiscalização de constitucionalidade, consonante com a tradição de defesa da autocontenção. (LIMA, 2013, p. 57)
Assumindo-nos como uma democracia imatura, que não confia no plenário legislativo que elege e tampouco se esforça para promover uma consciência coletiva capaz de renová-lo, desenvolvemos governos paternalistas, fomentados pela vontade utópica de um governo ideal e comprometido com os valores embutidos na Constituição.
“Desafio maior do que escolher o bom desenho institucional é encontrar o bom desenho para uma sociedade em termos concretos. O desafio é que as soluções propostas sejam capazes de incorporar princípios de justiça e valores democráticos – caso contrário, é desnecessária uma constituição – e ao mesmo tempo obter a adesão dos atores políticos relevante, assim como dos diversos setores sociais, que terão suas vidas diretamente impactadas pela constituição.” (VIEIRA, Oscar Vilhena. A Batalha dos Poderes, 2018, p. 134)
Nisso, a jurisdição constitucional se fortalece com base na sabedoria e nas virtudes inerentes ao conhecimento de quem a desenvolve. Todavia, aproveitando-se dessa ilusão, os juízes constitucionais (“A posição institucional dos juízes, que não dependem do sucesso eleitoral para manterem-se em seus cargos, facilita o desempenho do papel jurisdicional de guardião de valores e interesses a longo prazo, diminuindo o risco de que a lógica da política majoritária sacrifique em demasia o futuro em favor de interesses mais imediatos da sociedade.” (SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Notas sobre Jurisdição Constitucional e Democracia: A questão da “última palavra” e alguns parâmetros de autocontenção judicial, 2013, p. 157)) somados aos atores institucionais e políticos – e seus próprios interesses – determinam a direção que o desenvolvimento dessa democracia irá conquistar ao longo do tempo, isso por meio de um ativismo judicial ou, no caso, por meio da autorrestrição.
Como as cortes justificam sua opção pela autocontenção, isto é, sua escolha expressão ou implícita por não decidir um caso, notadamente na presença de repercussões políticas, favorecendo instituições majoritárias e preservando órgãos julgadores de custos políticos indesejáveis? (LIMA; GOMES NETO, 2018, p. 222)
Logo, o intuito desse capítulo consiste em analisar como o ‘não-dizer’, sobretudo, a autocontenção, é estrategicamente utilizada pelo Supremo para que alcance seus próprios interesses e também os interesses de quem lhes seja conveniente. Por conseguinte, entender como se desdobram os efeitos de decisões autocontidas e quais são suas consequências dentro do campo institucional e político brasileiro.
Para além disso, conforme denotado a cima, contribuem para a perpetuação da autocontenção como técnica de decisão dentro do controle de constitucionalidade exercido pelo STF.