A Lei nº 8.078/1990, que regula o Código de Defesa do Consumidor, traz importantes proteções para o consumidor, mas seu diálogo com outras fontes, como o Código Civil, é igualmente relevante. Um exemplo disso é o princípio da hipossuficiência, introduzido no Brasil pela doutrinadora Cláudia Lima Marques.
No direito do consumidor, o princípio da hipossuficiência visa equilibrar a relação entre consumidores e fornecedores, reconhecendo a posição de desvantagem do consumidor. Neste artigo, abordaremos as nuances desse princípio e como ele busca garantir uma relação contratual mais justa e equitativa para o consumidor, destacando sua importância no contexto das relações de consumo.
O princípio da hipossuficiência
O princípio da hipossuficiência está previsto no art. 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que estabelece:
VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a favor do consumidor, no processo civil, quando, a critério do juiz, a alegação for verossímil ou o consumidor for hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência.
Diferente da hipossuficiência puramente econômica, a hipossuficiência no âmbito das relações de consumo é mais ampla, exigindo uma análise mais detalhada de cada caso. O princípio pode ser aplicado levando em conta fatores fáticos ou jurídicos, sempre considerando a disparidade entre consumidor e fornecedor nas relações contratuais. Por isso, a doutrina afirma que todo consumidor é vulnerável, mas nem todos são considerados hipossuficientes.
Conforme o artigo do CDC, o juiz pode inverter o ônus da prova a favor do consumidor para facilitar a comprovação de suas alegações. Isso ocorre quando o magistrado entende que o relato do consumidor é verossímil ou que ele é hipossuficiente. A hipossuficiência pode ser técnica, como no exemplo de um consumidor que precisa provar a falta de energia elétrica em sua residência. Nesse caso, a concessionária de energia, por ter mais recursos técnicos, estaria em melhores condições de fornecer essa prova.
Assim, o princípio da hipossuficiência atua como um importante mecanismo de equilíbrio nas relações de consumo, garantindo uma maior proteção ao consumidor diante de situações onde sua capacidade de defesa é limitada.
Hipossuficiência x vulnerabilidade nas relações consumeristas
A hipossuficiência e a vulnerabilidade são conceitos distintos no direito do consumidor. Enquanto a vulnerabilidade é uma característica intrínseca a todo consumidor, que é sempre considerado vulnerável em qualquer relação de consumo, a hipossuficiência está ligada a uma situação de disparidade, onde o consumidor é tecnicamente inferior ao fornecedor.
A hipossuficiência, além de técnica, pode ser econômica e social. Nesses casos, está relacionada às condições financeiras e sociais das partes, como a capacidade de arcar com as despesas de um processo judicial. Para garantir o acesso à justiça, o direito protege as pessoas que são hipossuficientes economicamente, em conformidade com o art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, que assegura a apreciação do Judiciário para toda lesão ou ameaça a direito.
No direito do consumidor, é fundamental distinguir a hipossuficiência técnica da econômica. Por exemplo, um estudante com boas condições financeiras compra um computador para seus estudos, mas o aparelho apresenta defeitos. Mesmo com recursos financeiros, o estudante não tem como identificar o problema técnico do equipamento. Nessa situação, aplica-se a inversão do ônus da prova, onde o fornecedor, por ter o conhecimento técnico, deve demonstrar que o produto estava em perfeitas condições.
Portanto, o princípio da hipossuficiência busca equilibrar a relação contratual, especialmente em situações de disparidade técnica, garantindo que o consumidor não seja prejudicado por sua falta de conhecimento ou recursos para enfrentar o fornecedor. Ao reconhecer a hipossuficiência, o direito assegura a equidade nas relações de consumo, aplicando a inversão do ônus da prova para proteger o consumidor em desvantagem.
A inversão do ônus da prova no direito do consumidor
Tendo em vista a vulnerabilidade do consumidor frente às relações contratuais, a Constituição Federal buscou protegê-lo. Com o advento do Código Consumerista, foi possível abordar várias formas práticas de proteção do consumidor.
Muitos se perguntam por que o consumidor merece tal proteção? Pois bem, na relação de consumo, o fornecedor sempre estará em uma situação de vantagem perante o consumidor. Essa vantagem pode ser técnica, pode ser econômica ou social, por isso, que o consumidor é considerado vulnerável.
Para além da vulnerabilidade, como foi dito ao longo do presente artigo, também há a presença da hipossuficiência. Considerando que o art. 6º trouxe os direitos básicos do consumidor, sendo um deles relacionado com a sua defesa, faz-se necessário abordar a inversão do ônus da prova, haja vista a sua importância.
Algumas pessoas consideram que a inversão do ônus da prova no âmbito do direito do consumidor ocorre de forma automática, no entanto, a jurisprudência entende que a inversão do ônus da prova só será possível quando o consumidor estiver diante de uma hipossuficiência técnica ou de fatos verossímeis.
Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios em sede de Agravo de Instrumento – processo nº 0714843-93.2019.8.07.0000 - através do Relator desembargador Robson Barbosa de Azevedo, da 5ª Turma Cível, entendeu que:
“A inversão do ônus da prova, mesmo nos casos que envolvam direito do consumidor, não se opera de forma automática, dependendo do preenchimento dos seguintes requisitos: verossimilhança das alegações ou hipossuficiência do consumidor (...) sendo certo que na hipótese, encontra presente não só a verossimilhança das alegações como a impossibilidade ou excessiva dificuldade na obtenção da prova por parte do consumidor (...)”
Desse modo, é muito importante abrir um tópico na peça processual e fundamentar a necessidade da inversão do ônus da prova, bem como requerer tal inversão nos pedidos.
Conclusão
A hipossuficiência desempenha um papel essencial nas relações de consumo, servindo como uma ferramenta de equilíbrio entre consumidores e fornecedores. Ao reconhecer a vulnerabilidade do consumidor, o direito visa garantir uma relação mais justa, permitindo a inversão do ônus da prova em situações de desigualdade. Dessa forma, o princípio protege aqueles que se encontram em desvantagem técnica, econômica ou social, assegurando o acesso à justiça e a defesa de seus direitos de maneira efetiva e equilibrada no mercado.
Desta forma, entendemos que a hipossuficiência é um aspecto técnico importante, pois busca representar o consumidor no campo do direito processual através da inversão do ônus da prova.