A Universalização do Direito ao Saneamento Básico no Brasil e a Desestatização da CEDAE - Parte II

Conforme relatado no presente estudo, com as tendências privatistas que se desenvolveram mais intensamente nas décadas de 80 e 90, grande parte dos países começou a transferir para a iniciativa privada a gestão dos serviços de saneamento básico, sendo a França a pioneira nesse processo. O mesmo movimento, que se iniciou na Europa, se propagou para América Latina e para o Brasil, devido aos argumentos de que a gestão dos operadores privados provocaria maior investimento e desenvolvimento do setor, tendo em vista a limitação dos recursos públicos.

Entretanto, as experiências internacionais abordadas pelo Transnational Institute demonstraram que tais experiências foram negativas, pois com a gestão privada, houve registro do aumento das taxas, o aumento da desigualdade no acesso aos serviços, a mediocridade na prestação dos serviços, a falta de transparência e as quebras de contratos estabelecidos e que inclusive, não havia previsão do estabelecimento de metas de universalização, apenas de ampliação das redes de distribuição de água e esgoto. Os resultados passaram a ser observados também na América Latina, havendo uma percepção de que a lucratividade da atividade passava a ser prioridade quando contraposta com as necessidades dos seus usuários, ultrapassando inclusive os limites da subsistência devido a imposição da extrapolação das tarifas quando parte da população da Bolívia já passava por situação de penúria.

Assim, na década de 2000 iniciou-se o movimento reverso de tendência a remunicipalização e reestatização dos serviços, de modo que, ficou constatado que esse retorno para a gestão pública diminuiu significativamente as taxas, houve melhoria na qualidade dos serviços e principalmente, houve a retomada do acesso à população de maior vulnerabilidade. Entretanto, com a retomada dessa tendência de gestão pública dos serviços, o Brasil de forma mais atrasada ainda perfaz a tendência privatista da década de 80, indo em movimento contrário das constatações internacionais.

No Brasil, uma expectativa positiva em relação à desestatização das empresas públicas ocorre em relação às medidas mais imediatistas, com a obtenção de metas, estabelecidas pelo Decreto 11.466/2023 e 11.467/2023, que alteram o marco do saneamento básico regulamentando a Lei 11.445/2007, alterada pela lei 14.026/2020, que determina as diretrizes para o saneamento no país. Desta forma, teoricamente, os altos investimentos podem ser fiscalizados e acompanhados tanto pela Agência Reguladora de Energia e Saneamento quanto pelos usuários finais dos serviços. Por esta razão, admitindo que as experiências no Brasil poderiam ser refletidas de forma diferente, foram analisadas as experiências nos estados da região sudeste do país em que, infelizmente, os resultados demonstraram-se similares aos internacionais, principalmente no que tange as altas taxas cobradas pelos operadores privados e pela falta de transparência.

No estado do Rio de Janeiro, foi editada a Lei Estadual nº 9.370 no estado do Rio de Janeiro, que dispõe dos procedimentos e divulgação do cumprimento das metas previstas nos contratos de concessão. Importante ressaltar que o Estado do Rio de Janeiro passou por dificuldades financeiras, que fez com que o estado adotasse o Regime de Recuperação Fiscal mediante o cumprimento de diversas condições, dentre elas, a concessão dos serviços de abastecimento d’água e esgotamento sanitário.

Dentre as experiências no estado, foi analisado o município de Niterói, que tem demonstrado maior eficiência e qualidade na prestação dos serviços, cujos resultados refletiram na ocupação da 4ª posição do município no ranking elaborado pelo Instituto trata Brasil, no que diz respeito às metas de universalização dos serviços que devem corresponder ao índice de 99% de acesso á água e 90% de acesso ao serviço de esgotamento sanitário e que tem por objetivo a universalização dos serviços de saneamento básico até o ano de 2033. Entretanto, observa-se que o município havia realizado a concessão desde 1999 e que, até o presente momento, não foi possível identificar estudos comprobatórios sobre o acesso dos serviços na periferia do município, não havendo um consenso de melhoria nas comunidades. Outro ponto que carece de maiores esclarecimentos é acerca da fórmula utilizada pela concessionária privada para o equilíbrio econômico-financeiro da margem dos lucros do concessionário ou, ainda, quais os valores pagos à CEDAE pela compra da água por atacado, em que o valor supostamente subsidiado enfrenta questionamento na justiça e que evidenciariam uma maior proximidade das experiências internacionais.

Neste contexto, houve a concessão da Companhia Estadual de águas e Esgotos (CEDAE) do estado do Rio de Janeiro, que enfrentou o desinteresse dos operadores privados logo no processo de licitação do Bloco 3, que seria o bloco em que os maiores recursos deveriam ser investidos para a melhoria das redes e que seria ocupado por grande parte da população de baixa renda. Após segunda tentativa, o Bloco foi arrematado pela concessionária Águas do Brasil. Infere-se que, por ser um fato que ainda está em acontecimento, tendo em vista a recente concessão (2021), não há como especificar uma resposta absoluta sobre o processo de desestatização ter sido ou não a melhor alternativa para o Estado. Ao passo em que de fato houve mais investimentos pela concessionária do que havia sido realizado pelo setor público, também há de se levar em consideração os esforços governamentais para o sucateamento das empresas públicas que já viabilizavam o cenário para uma desestatização do setor, muitas vezes com coação e restrição orçamentária para o setor.

Por este motivo, ao invés de esgotar as possibilidades, o presente estudo buscou apresentar questionamentos que devem ser explorados em estudos complementares buscando compreender se a desestatização da empresa pública CEDAE foi a melhor alternativa para a melhoria dos seus serviços e mais ainda, a quem interessa essa desestatização, observando se os objetivos de universalização estão sendo cumpridos pelos operadores, pois como demonstrado, outros estados têm tido resultados exemplares em relação a gestão pública dos serviços de saneamento como a ocupação do ranking do Instituto Trata Brasil pelo município de São José do Rio Preto, em São Paulo, que apresentou nota máxima em todos os indicadores, sendo inclusive a primeira vez que isso ocorre nos relatórios, ou ainda, o município de Uberlândia que  ocupa o 3º lugar do ranking e que têm realizado parceria com outra instituição pública, que é a Caixa Econômica Federal, com investimento de R$ 100 milhões, ao passo em que, para que houvesse a concessão, foi necessário que o BNDS injetasse 18 bilhões que poderiam ter sido investidos nos setores públicos.

Conclui-se, portanto, que mecanismos de transparência estão sendo implementados, mas que não estão sendo cumpridos pelos concessionários, ainda, que os próprios municípios omitem informações primordiais para a elaboração de políticas públicas e controle dos agentes competentes e que, apesar das grandes expectativas em relação à concessão dos serviços de saneamento no Brasil, o que inclui o processo de desestatização da CEDAE, há grande possibilidade de que as experiências dos outros estados, da América Latina e da Europa se reproduzam, permitindo que os interesses mercantis das concessionárias privadas se sobreponham às necessidades da população, que tendem a ser mais facilmente alcançadas e protegidas pelos gestores públicos que, inclusive no processo de remunicipalização, apresentaram a diminuição das tarifas e melhoraram seu desempenho na qualidade dos serviços. Por fim, compreende-se que a universalização só será possível caso os esforços estejam voltados para a melhoria das condições dos serviços para a população de renda baixa, de menor escolaridade e prioritariamente parda, que ocupa as periferias ou as zonas Rurais, locais usualmente invisíveis aos prestadores de serviços por representarem locais menos rentáveis.