A Constituição Federal trouxe a tutela do consumidor no rol dos direitos fundamentais (art. 5º, inciso XXXII). É dever do Estado criar meios de proteção ao consumidor, considerando que o mesmo é o elo mais fraco da relação de consumo.
Desse modo, foi criada uma legislação especial, nos termos do art. 48 do Ato das disposições constitucionais transitórias (ADCT) onde foi estabelecido a elaboração de um Código de Defesa do Consumidor (CDC). Tal código foi criado através da lei nº 8.078 e promulgado no ano de 1990.
Insta salientar que, art. 1º do referido código estabelece normas de proteção e defesa ao consumidor, sendo estas consideradas de ordem pública e interesse social.
Outrossim, vale dizer que, conforme disposto no art. 170, inciso V, da Constituição Federal, a defesa do consumidor é considerada como um princípio da ordem econômica.
Ademais, o próprio Código de Defesa do Consumidor está pautado em uma norma principiológica, que busca assegurar princípios importantes como a dignidade humana e a boa-fé objetiva nas relações consumeristas, tendo em vista a vulnerabilidade do consumidor. Vejam-se:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) V - defesa do consumidor (...).
Desse modo, vamos encontrar muitos princípios dispostos ao longo da legislação consumerista, sendo certo que no presente vamos analisar dois deles, a saber: o princípio da harmonização dos interesses e o princípio da boa-fé.
Princípio da harmonização dos interesses
O princípio da harmonização dos interesses está descrito no artigo 4, inciso III do CDC. Este inciso refere-se a um dos princípios da Política Nacional das Relações de Consumo.
Conforme disposto no caput do referido artigo, tal política tem por objetivo a proteção ao consumidor, o respeito à sua dignidade, à saúde, segurança, bem como a proteção dos seus interesses econômicos, o que resulta em um equilíbrio na relação de consumo.
Este princípio busca um equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores de produtos, considerando que as regras aplicadas devem ser equilibradas para que não haja nenhuma onerosidade excessiva para ambas as partes. Vejamos:
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;
É certo que o consumidor é vulnerável nas relações consumeristas, no entanto, é necessário haver algumas ponderações para que o negócio jurídico seja justo, e que não haja ônus excessivo para nenhuma parte da relação.
Por isso, é muito importante haver esse equilíbrio, pois mesmo o consumidor sendo vulnerável e/ou hipossuficiente, não pode haver o desequilíbrio de uma relação apenas com o intuito de gerar um ônus para uma parte em detrimento de outra.
Neste contexto, conforme o texto normativo é preciso buscar uma harmonização dos interesses entre o consumidor e fornecedor em consoante com os ditames da ordem econômica, buscando, assim, um desenvolvimento econômico e tecnológico. A seguir, vamos analisar uma situação prática.
Atualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a pandemia do coronavírus, mais conhecido como Covid-19. Assim, muitas medidas de proteção foram tomadas, a população precisou se readequar, o que ocasionou mudanças significativas em vários setores, como na saúde e na economia.
Desse modo, devido ao isolamento social, alguns setores sofreram alterações, como por exemplo, a necessidade da produção em larga escala do produto Álcool 70% para prevenir o vírus, ou até mesmo a produção dos respiradores.
Acontece que, muitos fornecedores estavam vendendo o produto acima do preço justo, o que causaria uma onerosidade excessiva ao consumidor. Ao passo que muitos consumidores queriam que os produtos mantivessem o preço normal que era vendido antes da pandemia, o que não seria possível, considerando as mudanças.
É certo que, vários setores diminuíram a produção ou até pararam de produzir os insumos para a produção do álcool, no entanto, mesmo que os preços aumentassem por causa destas situações, ainda assim, de acordo com as notícias veiculadas, muitos fornecedores estavam vendendo de forma onerosa.
Sendo assim, é preciso haver mudanças no preço, considerando que houve alteração em todo mercado de consumo, bem como na fabricação dos produtos, o que ocasionará um aumento de insumos.
No entanto, esse aumento tem que ser ponderado, o órgão de proteção ao consumidor deve agir de forma harmônica para que não haja ônus nem para consumidor, nem para o fornecedor.
O negócio jurídico deve ser justo e equilibrado, preservando, assim, o princípio da harmonização dos interesses e o desenvolvimento econômico e tecnológico.
Princípio da boa-fé objetiva
O princípio da boa-fé é inerente a qualquer relação de consumo, tal princípio está ligado a conduta do fornecedor frente às relações consumeristas.
Muitos doutrinadores, como por exemplo, a professora Cláudia Lima Marques, entende que “a boa-fé é uma regra de conduta que possui deveres anexos”, tais deveres como o de cuidado, de transparência, de razoabilidade, entre outros,
O princípio da boa-fé também está disposto no inciso III do art. 4 do Código de Defesa do Consumidor. Tal princípio está atrelado a transparência, ao agir de forma ética, ao respeito e a responsabilidade nas relações consumeristas.
O Código de Defesa do Consumidor buscou proteger o consumidor, figura está vulnerável nas relações consumeristas. Assim, para que haja uma relação de equilíbrio entre as partes, se faz necessário que as mesmas estejam compactuando de boa-fé, celebrando um negócio de forma ética e transparente.
Por exemplo, se em um contrato de produtos ou serviços há cláusulas abusivas o fornecedor está violando o princípio da boa-fé, pois o mesmo não está agindo de forma ética, não está sendo transparente com o consumidor, considerando que este está suportando todo o ônus da relação, o que não é o certo.
A harmonização dos interesses está ligada diretamente com a boa-fé objetiva?
O princípio da harmonização dos interesses e o princípio da boa-fé têm relações entre si, tendo em vista que os dois princípios estão atrelados. Conforme exposto ao longo do presente artigo, os dois princípios estão tutelados no mesmo inciso, ou seja, art. 4, inciso II do CDC.
Outrossim, vale mencionar que, o princípio da boa-fé objetiva é inerente a qualquer relação de consumo. Tal princípio é considerado como o princípio base do Código de Defesa do Consumidor.
Quando relacionamos o princípio da harmonização dos interesses ao princípio da boa-fé, temos em mente que para que haja um equilíbrio nas relações consumeristas é necessário que as partes compactuam de forma honesta, clara, leal e objetiva.
Assim, considerando que, para a doutrina a boa-fé funciona como uma “regra de conduta”, é interessante que, tais condutas devem ser harmônicas aos interesses das partes.
Ou seja, é muito complexo pensar em um equilíbrio contratual, e ao mesmo tempo não agir de forma leal, honesta e transparente para buscar a finalidade almejada, que é o princípio do equilíbrio. Por esse motivo é que os dois princípios possuem relação direta e andam sempre juntos.
Referência Bibliográfica:
TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor: direito material e processual. – 7. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018.