O presente artigo visa analisar, sob a perspectiva jurídica-social, os instrumentos normativos de imposição ideológica na formação do indivíduo e as implicações de cunho discriminatório alimentadas e legitimadas pela forma de ensino religioso implementado nas escolas públicas, discutindo o papel da religião enquanto instituição, e componente da superestrutura do Estado, como aparato de dominação e poder, e sua influência nas relações sociais.
Estado, Aparência e Realidade
O Estado, através de suas instituições e ordens de imposição normativa, exerce papel precípuo na organização social. É preciso distinguir até onde podemos identificar sua essência e até onde estamos diante da sua face ideológica que configura sua aparência, e as conexões sociais estabelecidas através dessa.
Ao compreendermos o Estado tanto na vida prática como na teórica, consideramos elementos de subjetividade advindos do modo ideológico que estamos inseridos em vivência social. Nesse sentido, é preciso analisar criticamente não só os sistemas políticos mantenedores de sua estrutura, mas também sua configuração no âmbito do Direito e seu jurisdicismo que instrumentaliza a construção de uma realidade estatal.
Não pode o Estado se esgotar na sua expressão jurídica e institucional. Como regulador social e controlador da ordem imposta, o Estado deve apresentar sua realidade como um todo componente da sociedade civil. De acordo com Caffé Alves,
O Estado não se reduz às formas de sua objetivação, pelas instituições quais se destaca concretamente na vida cotidiana e do ordenamento jurídico que regula sua manifestação racional-formal e burocrática. Esse fenômeno da vida política dos povos não pode ser compreendido em toda a sua dimensão real, atendendo-se tão somente a expressão de sua aparência para o senso comum. Na verdade, o Estado não se explica por si mesmo, sua realidade deita raízes sobre a sociedade civil da qual propana e na qual tem sua razão de ser. (CAFFÉ ALVES, 1987, pp.28-29. Grifos do autor).
Na organização política da sociedade, em que o Estado se apresenta em sua forma concreta, as decisões e suas instituições estatais e jurídicas consideradas estáveis constituem o ambiente cotidiano, imerso na práxis da vida comum. O que conta como real é a consideração dos sujeitos sociais da verticalização de suas raízes e estruturação. A práxis cotidiana exige a visão do senso comum como algo familiar ou seguro, por meio de dados sugestionados pelos sentidos, que impregnam a consciência de seus sujeitos.
O mundo político por meio de ações, decisões, indivíduos, instituições e organizações se torna referência na relação de poder, de comando, sujeição e impotência, moldando ideologias e legitimando-as perante ao Estado por meio de leis que tutelam atitudes muitas vezes contraditórias, que acabam por colocar em extremos opostos bem estar social e interesses de classes, em que somente uma delas têm seu poder legitimado frente ao Estado.
A expressão aparente do Estado, através de suas instituições e ordens de imposição normativa, aponta para sua essência e, ao mesmo tempo, a oculta. (CAFFÉ ALVES, 1987). Logo, compreende-se que a essência do Estado não surge imediatamente ou de forma direta, mas se manifesta no contrário do que é, baseada nos diversos aspectos da sua existência. Tal fato não significa que devamos ignorar sua forma aparente, como se essa não fosse parte de sua realidade. Não se busca ignorar o senso comum, mas sim superá-lo. Superar a imposição de uma aparência colocada por uma perspectiva ideológica, e a depender de sua orientação, sendo discriminativa e limitante, identificá-la e combatê-la. De acordo com Caffé Alves,
Através desse processo, os mecanismos de poder são retratados por fatos, condutas e instituições com as quais lidamos na faina diária e que são considerados, em seu conjunto, com a própria realidade do Estado. Assim, as repartições e funcionários públicos e suas diuturnas funções disciplinares e administrativas; os juízes e suas sentenças; os governantes e suas decisões de interesse público; o “diário oficial” e suas comunicações de atos da administração e das leis; a polícia e sua presença nas ruas; o exator e sua cobrança de tributos; as assembleias legislativas e seus deputados eleitos; as forças armadas e seus aparatos de violência, etc., são as formas “autênticas” pelas quais o Estado habitualmente aparece aos olhos da consciência espontânea. [...] Essa teoria, ao julgar que traça as categorias que tornam possível o autentico exame das relações internas explicativas do poder e das organizações políticas, realiza na verdade uma inversão ilusória, pois apenas espelha nessas categorias o sistema político que acredita analisa, e tudo resulta num grande esforço cujo fim, entretanto, não é outro senão o de participar inconscientemente na reprodução desse mesmo sistema. (CAFFÉ ALVEZ, 1987, p.49. Grifos do autor)
Compreender o Estado passa por, antes de qualquer coisa, entender quem são seus atores e classes, suas estruturas e instituições, e principalmente, a ideologia dominante que coordena os atos da vida civil no aspecto jurídico-normativo e consequentemente costumeiro, além de suas ações de repressão e imposição. Tais conceitos serão mais amplamente abordados e explicitados no próximo capítulo, em que abordamos os conceitos de ideologia, bem como os de infraestrutura e superestrutura, a fim de compreendermos os alicerces que sustentam e dão forma ao Estado.
Estado e Poder
O Estado se organiza com um enorme número de pessoas, como um grande conjunto de órgãos ocupando uma estrutura piramidal. Sua base é formada por funcionários, que apenas cumprem obrigações sem poder de decisão em questões relevantes. Possui também a parte média alta, que compreende uma importância maior, pois está próxima do topo e assume papel de mando e desmandos. E o topo, em que se encontram os cargos do governo, que têm papel precípuo, onde se encontram: (1) Poder Executivo - presidente, primeiro ministro e seus ministros; (2) Poder Judiciário - juízes do tribunal superior; e (3) Poder Legislativo - parlamentares.(SILVA, 2002)
Em diversos cargos e posições, substancialmente no topo e mediações altas, encontramos os donos de capital, afastados formalmente de suas atividades econômicas, mas tendo suas fontes de renda que se dedicam à vida política. A forma como estes indivíduos atuam pode ser percebida, por exemplo, através de grupos que agem sob a tutela de frentes parlamentares integradas ao Congresso Nacional.
Essas frentes parlamentares são conhecidas popularmente como “bancadas”, dentre as quais podemos destacar as polêmicas bancadas que, juntas, ficaram conhecidas como BBB (Bíblia, Boi e Bala), são elas: “bancada evangélica” (formada por políticos religiosos), “bancada do boi” (constituída por políticos representantes das indústrias alimentícias e agronegócios) e “bancada da bala” (composta por políticos ligados à indústria bélica, ex-policiais e militares no geral). Tais frentes parlamentares representam interesses destes donos de capital que, munidos de poderes políticos, tem seus interesses ideológicos e capitalistas legitimados pelo Estado.
O “B”, de bíblia, da bancada “BBB” tem um representante bastante midiático, apontado como eminente candidato à presidência em 2018, deputado Jair Bolsonaro (Partido Social Cristão - PSC). Conhecido principalmente por afirmações extremistas e conservadoras.
As referidas “bancadas” ilustram de forma elucidativa a maneira como a dominação política é exercida por um viés ideológico outorgado pelo próprio Estado, que garante a estas classes dominantes a manipulação do poder a fim de fortalecerem a si mesmas. A partir dessa divisão, não podemos ignorar a concentração de poder e dominação garantida através de órgãos competentes do Estado que formalizam por meio de leis e aplicações seus interesses e vontades.