Classes e Dominação
Para entendermos como o Estado se fundamenta no âmbito social e entendermos como se estabelecem as relações de classes e a dominação de umas sobre outras, é preciso que antes exponhamos alguns conceitos fundamentais. É importante que, primeiramente, definamos o conceito de infraestrutura e superestrutura do Estado, a fim de compreendermos como se alicerça esta entidade governamental.
Para Karl Marx (1993), a infraestrutura são as forças de produção, compreendidas pelo conjunto formado pela matéria-prima, pelos meios de produção e pelos próprios trabalhadores, em que se estabelecem as relações de produção “patrões-empregados”. Assim, é possível dizer que a infraestrutura é a base econômica da sociedade, onde se dão as relações de trabalho, relações estas que são amiúde marcadas pela exploração da força de trabalho no interior do processo de acumulação capitalista, fator este, que marca a separação de classes e a dominação de uma sobre a outra na composição da estrutura social.
Já a superestrutura trata-se do resultado de estratégias dos grupos dominantes para a consolidação e perpetuação de seu domínio. É aqui onde podemos encontrar o papel desempenhado pela Religião enquanto integrante da estrutura jurídico-política e ideológica, bem como também o são as Artes e os meios de comunicação, por exemplo. Ainda de acordo com Marx, a superestrutura é a responsável pela manutenção das relações sociais existentes na infraestrutura, possibilitando assim a sua existência.
Para essa consolidação e perpetuação da dominação das classes dominantes, são utilizadas estratégias que demandam ora uso da força, ora da ideologia (MARX, 1993). Um dos instrumentos de uso da força é o Estado, o qual possui a força legitimada pela ideologia. O Estado mostra-se, portanto, constantemente à serviço da classe dominante, com objetivo de assim manter o status quo. Por ideologia, entendemos que é a prática de tornar certas ideias como verdadeiras e aceitas pela sociedade. No entanto, o que acontece é que esta ideologias são, em sua grande maioria, criadas pela classe dominante de acordo com seus interesses. Segundo Marx,
As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe também dos meios de produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. As ideias dominantes nada mais são que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação (MARX, 1993, p. 72).
A produção de ideias, de representações e da consciência está diretamente relacionada à materialidade através da atividade do homem social. As representações ideológicas partem do homem e suas atividades reais:
São os homens que produzem as suas representações, as suas ideias, mas os homens reais, atuantes e tais como foram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e do modo de relações que lhe corresponde (MARX, 1976 p.25)
Assim, podemos analisar o termo ideologia sob duas perspectivas: a primeira compreendida por um conjunto de ideias através das quais se toma consciência da realidade, permitindo a criação de juízos, crenças, opiniões e explicações sobre o mundo que vivemos. Aqui, a ideologia estaria assegurada normalmente por grupos sociais como partidos políticos, classes sociais, estratificações estamentais, raças, comunidades isoladas, etc., classificadas como “cosmovisões alternativas”, sobre as quais o indivíduo considera o mundo. E a segunda perspectiva, que traduz a ideologia como subjetividade social, com fundamento objetivo, avaliando o complexo de ideias, com verdades ou falsidades comportadas, que podem formar uma falsa representação, o que induz ao engano em determinadas situações sociais, escamoteando-as de maneira justificada. (CAFFÉ ALVES, 1987).
As ideologias são representações ordenadas de ideias, que se encontram separadas e independentes das condições materiais de vida, pois seus produtores, os ideólogos, não são vinculados à produção material das condições de existência. Ou seja, tais ideólogos se utilizam do lugar em que se encontram para tornar certas ideias como verdadeiras e aceitas pela sociedade. E assim, nada mais são do que ideias criadas pela classe dominante de acordo com seus interesses. “As ideias não aparecem como produtos do pensamento de homens determinados, mas como entidades autônomas descobertas por tais homens” (CHAUI, 1984, p.66).
Dessa forma, é possível observar a contradição surgida pelas ideias e resultantes do mundo social, em que a desigualdade impera: uns pensam enquanto outros trabalham, uns produzem enquanto outros consomem. Esta contradição leva ao dualismo que existe na relação entre alienação e ideologias dominantes. “A ideologia não é um processo subjetivo consciente, mas um fenômeno objetivo e subjetivo involuntário produzido pelas condições de existência social dos indivíduos” (CHAUI, 1984, p.78).
É impossível compreender a origem e função da ideologia sem compreender a luta de classes, pois a ideologia é um dos instrumentos de dominação de classe e uma das formas da luta entre estas, constituindo um meio usado pelos seus dominantes para exercer a dominação, ao mesmo tempo em que faz com que esta não seja percebida pelos dominados. Segundo Caffé Alves,
A ambiguidade do interesse de classes, baseada na realidade do processo produtivo, é que permite estabelecer os obstáculos ao processo de tomada de consciência crítica ou reflexiva por parte dos indivíduos a respeito de sua real situação de classe na dinâmica social. Essa ambiguidade, manifestada por interesses contraditórios e ao mesmo tempo não-excludentes entre si, ou seja, interdependentes, repousa na realidade de suas feições sociais dialeticamente vinculadas: a que se refere ao (a) processo de produção que já se encontra profundamente socializado e, por consequência, ao aspecto da comunhão dos interesses sociais em face da preservação e ampliação da mesma massa de bens de produção, de cujo funcionamento e acumulação depende a sobrevivência de todos os membros da sociedade, sem distinção de classes; e a que se refere ao (b) processo da apropriação do produto social que ainda se mantém em caráter privado, com a particularização ou fragmentação dos interesses sociais, diferenciados assimetricamente em razão da posição, pelos membros da sociedade, como proprietários ou não (propriedade real) daqueles mesmos bens de produção, permitindo sua acumulação ampliada apenas por parte e no interesse de um pólo da relação, isto é, da classe dominante. (CAFFÉ ALVES, 1987, p.156. Grifos do autor).
O que torna a ideologia possível é a separação entre trabalho intelectual e trabalho material. Tendo seu poder ou eficácia aumentado ou diminuído pela sua capacidade e habilidade de ocultar a origem da divisão social em classes ou luta de classes (MARX, 1993). A ideologia produz ideias que confirmam a alienação. Por meio dela, na sociedade capitalista, os homens são vistos como desiguais por natureza, sendo concedido a eles simultaneamente o direito ao trabalho e falsas condições de equidade. E ainda que reforçada sua desigualdade, reforça também perante o Estado essa contraditória ideia de igualdade entre os mesmos, que camufla o seu papel de agente de coerção ou um instrumento de dominação.
Para Marx (1975), o dinheiro é o principal agente de alienação social e auto-alienação humana. Em “A Questão Judaica”, o autor demostra que o judaísmo – menos por sua forma religiosa ritualística e mais pelo fato de estar imbricado na prática social cotidiana – fora responsável por tal alienação ideológica, uma vez que destituiu o valor real das coisas e as transformou em dinheiro, em capital. Em suas palavras:
A necessidade prática, o egoísmo é o princípio da sociedade civil e revela-se como tal logo que a sociedade civil produziu plenamente o Estado político. O deus da necessidade prática e do interesse pessoal é o dinheiro. O dinheiro é o ciumento deus de Israel, a cujo lado mais nenhuma divindade pode existir. O dinheiro rebaixa todos os deuses do homem e transforma-os em mercadoria. O dinheiro é o valor universal e autossuficiente de todas as coisas. Por conseguinte, destituiu todo o mundo, tanto o mundo humano como a natureza do seu próprio valor. O dinheiro é a essência alienada do trabalho e da existência do homem; esta essência domina-o e ele presta-lhe culto e adoração. O deus dos judeus foi secularizado e tornou-se o deus deste mundo. O câmbio é o deus real do judeu. O seu deus é apenas o câmbio ilusório (MARX, 1975, pp.35-36).
Nesse sentido, juntamente com a religião e com a política, Marx identifica o dinheiro como uma forma de auto-alienação humana. Na primeira parte desta mesma obra, o autor compara a política com a religião, enquanto que na segunda associa religião a dinheiro. Ele identifica o dinheiro como a essência alienada do trabalho, e se a religião é uma forma de auto-alienação teórica, o dinheiro surge, portanto, ao lado da política, como mais uma forma de auto-alienação prática (MARX, 1975).