A Constituição Federal de 1988 traduz um significativo avanço em relação à garantia de direitos fundamentais, individuais e sociais, bem como mecanismos democráticos. A abstenção do Estado nas crenças individuais e a neutralidade na definição de uma religião oficial foi objeto de preocupação na sua elaboração, e, sob sua égide, o Brasil intitula-se um Estado Laico, conforme disposto no artigo 19, inciso I:
”Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embarcar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.” (BRASIL, 1988)
Conforme Nilton de Freitas Monteiro (2008), a laicidade não é apenas uma questão que afeta às religiões. O Estado não assume qualquer tipo de religião ou crença filosófica, sem impedimento de optar por valores éticos considerados juridicamente protegidos. Na ciência do direito, por exemplo, há uma séria disputa entre uma visão jurídica “positiva” e uma visão jurídica “jusnaturalista”. Não caberia ao Estado posicionar-se por esta ou aquela tendência. O mesmo se diz em relação a determinados valores sociais, que acabam se tornando valores juridicamente protegidos, sem embargos de serem dedutíveis de uma visão proveniente desta ou daquela religião. “É natural que as ideologias e as crenças influam na sociedade e na elaboração das leis; mas não cabe ao poder público assumir este ou aquele conjunto de ideias ou crenças religiosas, de modo direto e explícito.” (MONTEIRO, 2008, p. )
A laicidade assegura ao indivíduo escolher uma religião, assim como não escolher. Assegura e garante a liberdade de crença ou descrença. E essa escolha não pode em qualquer hipótese ser influenciada por ações estatais, sob pena de ferir a liberdade do indivíduo. Como afirma Maria Lúcia Karam (2009, p.24), “o Estado não pode impedir a livre adoção de uma religião e suas práticas, individuais ou coletivas. Ao contrário, tem de garanti-las, para assim garantir a liberdade individual. Mas, da mesma forma, não pode obrigar, nem constranger, nem induzir ninguém a seguir os preceitos e práticas de qualquer religião, pois, se o fizer, estará igualmente violando a liberdade individual”.
No mesmo sentido, José Afonso da Silva (2002) afirma que a liberdade de crença abarca a liberdade de escolha da religião ou a opção e direito de mudar de religião, além de possibilitar a liberdade de não aderir à religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de ser agnóstico. Mas não compreende a liberdade de impedir o livre exercício de qualquer religião ou crença, pois essa vai até onde não prejudique a liberdade de ninguém. (SILVA, 2002)
A liberdade de crença foi analisada por Canotilho, sob a perspectiva dos direitos fundamentais:
“A quebra de unidade religiosa da cristandade deu origem à aparição de minorias religiosas que defendiam o direito de cada um à verdadeira fé. Esta defesa da liberdade religiosa postulava, pelo menos, a ideia de tolerância religiosa e a proibição do Estado em impor ao foro íntimo do crente uma religião oficial. Por este facto, alguns autores, como G. JELLINEK, vão mesmo ao ponto de ver na luta pela liberdade de religião a verdadeira origem dos direitos fundamentais. Parece, porém, que se tratava mais da ideia de tolerância religiosa para credos diferentes do que propriamente da concepção da liberdade de religião e crença, como direito inalienável do homem, tal como veio a ser proclamado nos modernos documentos constitucionais” (CANOTILHO, 1993, p.314).
E embora a Constituição de 1988 trate da questão da separação entre Estado e Igreja, no Art. 210 § 1º, prevê̂, por sua vez, o ensino religioso como disciplina integrante da grade curricular das escolas públicas, apresentando a confusa e contraditória relação entre Estado e Religião:
Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
§ 1o - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituírá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. (BRASIL, 1988)
O estudo sobre as religiões nas escolas poderia atuar como uma excelente ferramenta no combate do preconceito racial-religioso, se realizada de forma a abranger e contemplar nossas mais variadas formas de crença e entendimento do Sagrado, respeitando a diversidade religiosa. O que acontece, porém, é que o histórico do processo educacional no Brasil, e a forma como ele se deu, tem até hoje seus reflexos sentidos na vida prática. Dos ideais higienistas que colocavam a educação e a saúde como problemas primordiais, já que consistiam nas bases incontestáveis do “vigor físico, da melhoria da raça, da produção, da alegria, da riqueza, do progresso” (BOMENY, 2001, p.27), como apontava Belisário Penna, chamado por Oswaldo Cruz, responsável pelo inventario sobre as condições de saúde de população sertaneja em 1912, pouco tempo depois da abolição da escravatura. Poder-se-ia dizer que a educação passa a ser vista então como a salvadora da sociedade.
Assim, a escola passa a assumir a responsabilidade de uma grande missão salvadora, a de colocar o Brasil “no trilho do desenvolvimento”, com a incumbência de inculcar o mínimo de civilidade à população: “O remédio parecia milagroso: alfabetizando-se a população, corrigiam-se de pronto todas as mazelas que afetavam a sociedade brasileira em sua expressiva maioria” (BOMENY, 2001, p.31).
Com os ideários da educação francesa e de uma política higienista que procurava estabelecer uma estrutura comum a partir do Estado, que estruturasse uma sociedade que conseguisse superar os atrasos, o que tivemos na prática desta aplicação em nosso país foi a negação da diversidade cultural existente, na tentativa caótica de promover a unidade da nação, num processo de homogeneização que nada mais fez do que agravar o quadro de submissão social frente à uma ideologia imposta por critérios importados que não condiziam em nada com nossa realidade.
Na ideologia higienista, as etnias que diferiam da branca eram representantes do atraso, atraso este que buscava superar através desta tentativa homogeneização nacional. De acordo com Oliveira (2017), atualmente um dos princípios conceituais — estes presentes nos documentos que regem a educação como o RCNEI, o PCN e a LDB, entre outros. (OLIVEIRA, 2017, p.8) — que regem a educação no nosso país visa compreender a diversidade de etnias e assim, tudo mais que elas abarcam, como cor, língua, costumes e religião, o que temos como resultado desta equação é um cenário no mínimo contraditório.
Tal cenário evidencia uma lógica dual entre as ondas progressistas e as ações reacionárias de violência simbólica nas práticas pedagógicas que estão relacionadas com o real propósito para qual a educação pública foi pensada: propagar as ideologias de uma classe dominante, interessada em disseminar sua ideologia a partir das estruturas administrativas. Eis aqui na prática a imposição ideológica de uma classe sobre outra, subordinando-a a seus interesses próprios.
Para compreender melhor como se dá a organização das concepções pedagógicas do cotidiano escolar, é preciso que observemos a ideia de currículo. Segundo Candau:
Estamos entendendo currículo como as experiências escolares que se desdobram em torno do conhecimento, em meio as relações sociais, e que contribuem para a construção das identidades de nossos/as estudantes. Currículo associa-se, assim, ao conjunto de esforços pedagógicos desenvolvidos com intenções educativas.” (MOREIRA et CANDAU, 2007, p.18)
Mas, as atividades pedagógicas escolares não se contêm a ensinar conteúdo ou envolver o aluno numa formação cidadã, uma vez que os esforços com intenções educativas não se restringem às expectativas que permeiam o ideário social. Quando pensamos a escola como um reflexo da sociedade em que está inserida, inculca nas mentes dos educandos de maneira implícita ou não, os preconceitos, e quaisquer formas de opressão. Podemos observar como isso acontece através do que chamamos de currículo oculto:
Cabe destacar que a palavra currículo tem sido também utilizada para indicar efeitos alcançados na escola, que não estão explicitados nos planos e nas propostas, não sendo sempre, por isso, claramente percebidos pela comunidade escolar. Trata-se do chamado currículo oculto, que envolve, dominantemente, atitudes e valores transmitidos, subliminarmente, pelas relações sociais e pelas rotinas do cotidiano escolar. Fazem parte do currículo oculto, assim, rituais e práticas, relações hierárquicas, regras e procedimentos, modos de organizar o espaço e o tempo na escola, modos de distribuir os alunos por grupamentos e turmas, mensagens implícitas nas falas dos (as) professores (as) e nos livros didáticos. (MOREIRA et CANDAU, 2007, p.18)
Tal quadro conflitante e dualista corrobora como proposta de abordagem deste artigo, a decisão de improcedência da ADI 4439 pelo Supremo Tribunal Federal em setembro de 2017, que do contrário garantiria a abrangência que o ensino religioso poderia ter (se legitimado por lei e respeitado o princípio de laicidade). Com este ato, estamos à mercê de uma decisão que coloca como admissível um ensino religioso confessional, isto é, que permite que as aulas sigam somente a pauta de ensino de uma religião específica.
Na prática, isto significa que prevalecerão as ideologias religiosas vigentes em nosso meio social, isto é, as religiões cristãs com predominância da católica e das protestantes e neopentecostais. Segundo Élcio Cecchetti, coordenador-geral do Fórum Nacional Permanente de Ensino Religioso (FONAPER) e professor na rede pública Santa Catarina, “isso deve privilegiar o catolicismo e certas igrejas evangélicas. O STF deu aval para que grupos majoritários adentrem as escolas – e as minorias seguirão excluídas e marginalizadas".