A Judicialização da Política sob a Técnica da Autocontenção

As decisões judiciais, em que a técnica da autocontenção foi aplicada no exercício do controle de constitucionalidade, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, repercutem dentro do desenho institucional e jurídico brasileiro, principalmente, para o desígnio do princípio democrático e para a efetiva concretização dos direitos e das garantias fundamentais elencadas pela Constituição Federal de 1988.

Para isso, então, foi estudado como o fenômeno da judicialização da política é utilizado por nossa corte constitucional como um instrumento estratégico para alcançar interesses do próprio Tribunal ou de grupos político/econômicos que possam favorecê-lo dentro do panorama político, de forma que a reputação laboral do Supremo se mantenha promissora a atingir os objetivos da sociedade civil, isto é, do texto constitucional. Isso, mesmo que nos julgamentos, sejam em sentenças definitivas ou decisões provisórias, não haja mérito decidido tampouco deliberação acerca do tema impugnado pela ação.

Partindo dessa atividade inconsistente, percebe-se o comportamento autocontido do STF, notadamente composto por um cálculo político minucioso, com o intuito de evitar o constrangimento judicial e institucional em casos que detém grande repercussão, capazes de influenciar o jogo político e fomentar a participação de entidades coletivas de representação civil para a solução da controvérsia. 

Assim, verificou-se por meio do projeto de pesquisa de tema “Teoria da Decisão Judicial e da Jurisdição Constitucional” realizado no ano de 2018, com a seleção e a respectiva análise dos julgamentos proferidos, no âmbito do Direito Constitucional, o seguinte resultado: a maioria das ações que provocaram o Supremo foram as Ações Diretas de Inconstitucionalidade. Logo, foram escolhidas as ADIs em que se identificou o uso das chamadas ‘virtudes passivas’, que costumam caracterizar a postura autorrestrita.

Nisso, a Constituição Federal e a democracia brasileira ficam submissas a um grande paradoxo de intenções e factualidades, que o próprio texto constitucional as colocou. Isso, porque a competência exclusiva e originária atribuída ao Poder Judiciário para a atividade da revisão judicial foi concedida por força constitucional, tendo em vista a descrença da Assembleia Constituinte nas instituições jurídicas e nos outros Poderes Políticos.

Embora o Supremo Tribunal Federal tenha feito um proveitoso trabalho ao longo dos mais de 30 anos da Constituição de 1988, o exerce com demasiadas divergências em relação à intenção do poder constituinte. E, no que tange à promoção dos direitos e garantias fundamentais, ao assumir o comportamento autorrestrito mantém os princípios constitucionais abertos e complexos, sem que a sociedade civil obtenha segurança jurídica do que lhe é assegurado. 

Logo, apesar de existir um longo rol de direitos e garantias, quando esses são questionados e provocam o Supremo, permanecem controversos ou aguardando a concretização do controle da respectiva constitucionalidade por tempo indeterminado.

Por isso, esse artigo procurou compreender como se desenvolveu o constitucionalismo democrático brasileiro e como a judicialização da política numa perspectiva autocontida sobressaiu dele. Por conseguinte, explorou a autocontenção como técnica de decisão judicial, de forma a verificar as circunstâncias favoráveis que induzem o Supremo a optá-la e, paralelamente, seus reflexos e efeitos dentro do regime democrático. Por fim, apresenta a exemplificação de toda a construção doutrinária da falácia da promoção da dignidade da pessoa humana com os casos de ADIs que se encaixam nos fatos narrados.

O Constitucionalismo Democrático e seus Desdobramentos

A Assembleia Constituinte de 1987, ao contrário das anteriores, instituiu o sistema constitucional democrático, de forma que a Constituição de 1988 se tornou um instrumento para materializar a rigidez do referido sistema e, por conseguinte, para preservar e restringir o poder de decisão da soberania popular com o intuito de garantir a autonomia do povo. 

Assim, tal regime político surge como resposta à repressão e à opressão existente no período ditatorial, de forma que a rigidez se configura, então, com o garantismo das liberdades por meio de um vasto rol de direitos fundamentais e a impossibilidade de reformá-los. 

Logo, o novo texto constitucional pretende, primordialmente, assegurar a igualdade política e social entre os indivíduos, bem como, a dignidade humana dos mesmos, de maneira que protagoniza o processo de redemocratização brasileiro. Para isso, a Carta assume a Supremacia Constitucional como seu maior e principal princípio, “contudo, não se restringe aos direitos fundamentais. Todas as suas normas se irradiam pelo ordenamento e determinam os conteúdos da legislação ordinária, não podendo ser derrogadas, modificadas ou ab-rogadas por quaisquer outros dispositivos.”

No constitucionalismo moderno, o poder político deveria resultar da vontade humana, expressa por intermédio de um documento escrito que fosse capaz de habilitar o governo e estabelecer limites para o seu funcionamento. Era preciso identificar a vontade do povo nesse novo modelo. Foi justamente essa a função da “teoria do poder constituinte.”  (VIERIA, 2018, p. 78-79)

A referida “teoria do poder constituinte” é justamente o que traz legitimidade para a reivindicação da Constituição como lei Suprema.

Dessa forma, a Carta Cidadã de 1988 representa a transição entre regimes políticos completamente antagônicos; enquanto na ditadura vivia-se um estado de exceção, em que as intenções do Poder Público prevaleciam sobre os interesses de cada indivíduo, na democracia os interesses individuais são levados em consideração para a construção de uma vontade coletiva, a qual se enquadra como elemento essencial para o procedimento democrático. 

O risco era de que a maioria pudesse usurpar os direitos da minoria. Trata-se de um dilema inerente a um governo republicano, já que os direitos naturais são tomados como o elemento central da estrutura política. A estrutura para o controle é o sistema de freios e contrapesos, de acordo com o qual as instituições de governo são dispostas de tal maneira que a ambição humana dos que ocupam um poder de controle a ambição humana daqueles que exercem um outro.

A atual Constituição resultou do mais amplo e democrático pacto firmado entre os múltiplos setores da sociedade brasileira ao longo de sua história. Reativos a um regime autoritário, os constituintes buscaram assegurar uma generosa carta de direitos e fragmentar o exercício de poder, criando um sistema político de caráter altamente consensual, de forma a exigir a coordenação entre os diversos poderes e segmentos políticos para que o governo pudesse funcionar. (VIEIRA, 2018, p. 24)

Nesse contexto, partindo da teoria constitucional de Carl Friedrich, afirma-se que os direitos humanos e a separação dos poderes, para além de obstáculos, promovem a democracia, visto que são estruturas capazes de cooperar para a construção de uma decisão pública por meio da liberdade de expressão de cidadãos livres bem informados, os quais realizam escolhas, emanadas por suas vontades individuais e fundadas em uma racionalização coletiva, que se tornam os direitos e as normas positivadas no texto constitucional, e que irão nortear qualquer legislação decorrente deste e pelas quais todos os indivíduos obrigar-se-ão a respeitar.

Por isso, tendo em vista o longo período de exceção, encontra-se na democracia uma forma de governo ideal para a sociedade brasileira da época, por ser um regime que oferece tratamento igualitário aos indivíduos por meio da imposição de uma regra, uma vez que “a igualdade e a autonomia só se realizam num sistema em que cada um seja governado por uma vontade da qual participe.” Por conseguinte, tal esperança também se transfere para o Poder Judiciário, o qual foi visto como capaz de sanar quaisquer questões existentes naquele momento, já que reconhecido o fracasso dos Poderes Legislativo e Executivo.

“A Justiça aparece como então como uma instituição que, sob a perspectiva de um terceiro neutro, auxilia as partes envolvidas em conflitos de interesses e situações concretas, por meio de uma decisão objetiva, imparcial e, portanto, justa.” (MAUS, 2000)

Para Koerner:

Havia consenso entre os principais agentes políticos sobre os princípios gerais, as bases da organização política e o cerne dos direitos fundamentais da nova Constituição. Fazia parte desse consenso o fortalecimento das instituições judiciais, com conteúdos precisos a respeito da independência financeira e administrativa do Poder Judiciário, das garantias ao Ministério Público e da ampliação do acesso à Justiça. 

Em razão disso, a elaboração da Constituição de 1988 se tornou um marco histórico para o direito constitucional no Brasil, o qual, a partir deste momento, passou do obsoletismo ao auge em menos de uma geração. Antes da Segunda Guerra Mundial, o Poder Legislativo era considerado a única fonte de Direito, de forma que as Constituições eram tratadas apenas como programas políticos e não assumiam força normativa (SARMENTO, 2009). 

Assim, inspirada pelas cartas constitucionais da Itália e Alemanha, foram incorporados e instalados os Tribunais e a Corte Constitucional, o que conferiu ao Poder Judiciário competências exclusivas. A partir disso, a Constituição é reconhecida como uma norma jurídica autêntica que limita as leis do Parlamento e que também é capaz de invalidar as mesmas por meio da jurisdição constitucional. (SARMENTO, 2009)

A regulamentação do controle judicial constitucional se tornou explícita após a promulgação das leis 9.868 e 9.882, ambas de 1999, em que ficou clara a tendência do caráter vinculante e da concentração de seu exercício sob o Supremo. Trata-se de um procedimento utilizado por qualquer órgão público responsável pela interpretação da Constituição Federal para análise de atos políticos ou legislações infraconstitucionais de forma a declarar a validade dos mesmos.

Os Tribunais e a Suprema Corte assumem o controle jurisdicional de constitucionalidade, aflorando uma tensão entre o constitucionalismo e a democracia, em que, de um lado há a proteção de direitos e, no outro lado, há a proteção da regra da maioria, respectivamente. 

A incorporação desse mecanismo contramajoritário pode ser considerada uma ingerência legítima na estrutura da democracia, uma vez que uma decisão substantiva determinada por uma soma de vontades individuais, atribuídas de forma equivalente, não poderia ser reanalisada pelo discernimento de uma elite judiciária para uma possível substituição, mediante o julgamento destes, já que as legislações e os atos políticos são elaboradas e realizados por representantes escolhidos por uma soberania popular.

Todavia, ainda que haja tal tensão, concomitantemente, o constitucionalismo também zela pela emancipação da democracia por meio do caráter positivo, não sendo possível resumi-lo somente a uma restrição à regra da maioria. Importa mencionar que esta regra se demonstra como um grande fator de destaque dentro do processo democrático, porém, as decisões coletivas não são compostas apenas por fatores aritméticos, como irá ser exposto adiante. (VIEIRA, 1997)

Os reflexos de tal paradoxo são perceptíveis, por exemplo, por meio da implantação de cláusulas super-constitucionais (termo utilizado por Oscar Vilhena Vieira em A Constituição como reserva de Justiça (1997) para se referir às cláusulas inatingíveis ou cláusulas pétreas), as quais limitam materialmente o poder constituinte reformador por não poderem ser abolidas, nem mesmo por algum procedimento qualificado, conforme preceituado pelo art. 60, §4º e seus incisos da Carta Magna. Assim, admite-se um cerne inalterável no texto constitucional, ainda que sejam passíveis de defesa pelo Poder Judiciário, uma vez incorporado o controle de constitucionalidade.

Tem-se desta maneira um constitucionalismo social desformalizado, em que impera a cultura jurídica positivista, porém submetido a regras super-constitucionais que pretendem assegurar a intangibilidade dos valores ético/constitucionais fundamentais. (VIEIRA. 1997, p. 60)

O termo “constitucionalismo social desformalizado” foi utilizado para caracterizar as inovações trazidas pela Constituição de 1988, alinhadas ao movimento neoconstitucionalista (o autor mexicano Miguel Carbonell constata que o referido movimento não assume uma linha conceitual capaz de defini-lo, de forma que somente é possível identificar alguma definição por meio de cada um dos movimentos neoconstitucionalistas) que vinha crescendo ao redor do mundo, no que tange a uma indefinição conceitual, tendo em vista as variadas fontes ideológicas, teóricas e metodológicas, e que coloca o sistema institucional brasileiro como parte desse fenômeno jurídico que insurgia.

Não é tarefa singela definir o neoconstitucionalismo, talvez porque, como já revela o bem escolhido título da obra organizada por Carbonell, não exista um único neoconstitucionalismo, que corresponda a uma concepção teórica clara e coesa, mas diversas visões sobre o fenômeno jurídico na contemporaneidade, que guardam entre si alguns denominadores comuns relevantes, o que justifica que sejam agrupadas sob um mesmo rótulo, mas compromete a possibilidade de uma conceituação mais precisa. (SARMENTO, 2009, p. 97-98)

A tentativa de buscar descrever um conceito para os novos textos constitucionais da época, após um longo período de totalitarismo, foi de extrema dificuldade, tendo em vista que os movimentos constitucionais foram independentes em suas formas de atuação, de forma que o neoconstitucionalismo é um termo utilizado para englobá-los num mesmo instituto.

Logo, baseados em suas particularidades, o marco teórico utilizado para o desenvolvimento desse fenômeno jurídico se baseou na influência de importantes denominadores comuns em sua formulação.

Os neoconstitucionalistas se fundamentaram numa base teórica diversa composta por jusfilósofos, os quais representavam “linhas positivistas e não positivistas” (SARMENTO, 2009, p. 97). A primeira linha não acredita em uma ligação intrínseca entre o Direito e a Moral, somente em uma interligação entre ambos, de forma que os valores morais necessitam ser positivados pela força jurídico-normativa; a segunda linha compreende que Direito e Moral possuem uma interligação necessária, sendo conectados obrigatoriamente, independente de os valores morais serem positivados. (LINS JÚNIOR, SILVA JÚNIOR, 2016).

A teoria positivista tradicional era insuficiente e incompatível com a realidade das diversas territorialidades que presenciavam um momento favorável à ascensão de regimes democráticos com a necessidade de proteção de direitos e garantias fundamentais. Por isso, o neoconstitucionalismo se dedicou à discussão dos métodos e a utilizar teorias de argumentação como forma de prevalecer a racionalidade jurídica (SARMENTO, 2009). Assim, esse constitucionalismo concede espaço para a Moral, mas não muito, sendo vital para seu próprio desenvolvimento que haja distinção entre Direito e Moral, para que os princípios da justiça fossem incorporados pelo ordenamento e pela sociedade de maneira clara.

Por conseguinte, o neoconstitucionalismo assume como grande característica e foco tornar o Poder Judiciário protagonista dentro do ordenamento jurídico, o que se tornou realidade no Brasil. Portanto, percebe-se um novo paradigma, tanto na teoria quanto na prática jurídica, com uma maior independência consagrada por meio do art. 5º, XXXV, que preceitua a inafastabilidade da tutela judicial.

Ainda assim, a dificuldade para definir o neoconstitucionalismo permanece, no entanto, é possível elencar algumas características do movimento: “o reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e valorização da sua importância no processo de aplicação do Direito; a rejeição ao formalismo e recurso mais frequente a métodos ou “estilos” mais abertos de raciocínio jurídico: ponderação, tópica, teorias da argumentação etc.; constitucionalização do Direito, com a irradiação das normas e valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; reaproximação entre o Direito e a Moral, com a penetração cada vez maior da Filosofia nos debates jurídicos; e judicialização da política (termo utilizado para expressar o comportamento do Poder Judiciário, por exemplo, em matérias que não correspondem a sua competência ou gerência que, por conseguinte, acabam por influenciar o cenário político) e das relações sociais, com um significativo deslocamento de poder da esfera do Legislativo e do Executivo para o Poder Judiciário.”

Segundo Miguel Carbonell, o neoconstitucionalismo desdobra-se em três planos de análise que se conjugam: o dos textos constitucionais, que se tornaram mais substantivos e incorporaram amplos elencos de direitos fundamentais; o das práticas judiciais, que passaram a recorrer a princípios constitucionais, à ponderação e a métodos mais flexíveis de interpretação, sobretudo na área de direitos fundamentais; e o dos desenvolvimentos teóricos de autores que, com as suas ideias, ajudaram não só a compreender os novos modelos constitucionais, mas também participaram da sua própria criação. (SARMENTO, 2009, p. 98)

Como exemplo, o poder constituinte originário transportou para as cláusulas super-constitucionais um conteúdo ético ligado aos direitos humanos, ao direito natural e, também, ao Estado Democrático de Direito e ao princípio da separação dos poderes, o qual foi norteador para o legislador constitucional na elaboração dos preceitos constitucionais estabelecidos na Carta Cidadã. Dessa forma, tais cláusulas admitem uma função de emancipação humana tal como a democracia, tornando-se meios legítimos para sua própria persecução, uma vez que podem ser aplicadas como uma maneira para garantir os direitos humanos fundamentais da geração que elaborou o documento constitucional como também das gerações futuras.

Para que a finalidade das cláusulas seja atingida, é necessário que seu conteúdo seja passível de justificação para ser aceito racionalmente, de forma que as cláusulas necessitam ser apresentadas como elementos estruturais que habilitem e favoreçam os cidadãos na sociedade, para que sejam instrumentos que viabilizem a evolução da sociedade democrática, mantendo liberdades iguais de autonomia e participação entre os cidadãos. (VIEIRA, 1997)

Interpretadas adequadamente, as cláusulas super-constitucionais não constituirão um obstáculo à democracia, mas servirão como instrumento que, num momento de reformulação da ordem constitucional, permitirão a continuidade do sistema político, habilitando cada geração a escolher seu próprio destino, sem, no entanto, estar constitucionalmente autorizada a furtar esse mesmo direito às gerações futuras. (VIEIRA, 1997, p. 97)

O fato de uma cláusula ter sido estabelecida pelo poder constituinte como inalterável, não a torna suficiente para sua garantia de legitimidade. Em realidade, a principal problemática no controle de constitucionalidade a ser exercido pelo Poder Judiciário encontra-se na interpretação, uma vez reconhecido o conteúdo aberto dos princípios constitucionais – “mas dotados de forte carga axiológica e poder de irradiação” – deixados pelo poder constituinte originário, o que pode possibilitar compreensão distinta da intentada pelo legislador constitucional. Logo, “o ponto crucial de controle sobre esta atividade argumentativa-decisória é a obrigação do magistrado de fundamentar e justificar as razões que o levaram a determinada decisão”.

Partindo do supracitado ponto crucial determinado por Vieira e seguindo para a conclusão do plano de análise de Carbonell, as decisões dos tribunais foram impulsionadas, concomitante à produção doutrinária nacional, influenciadas, mais uma vez, por produções europeias (as lições da doutrina portuguesa, especialmente de Canotilho e Vital Moreira, foram as principais influências para o magistrado brasileiro à época) e por textos constitucionais de Portugal, Itália e Espanha, os quais adotaram o modelo do judicial review (termo utilizado para referir-se à jurisdição constitucional. Tais países, assim como o Brasil, incorporaram tal lógica por influência do modelo norte-americano de controle constitucional, em que o princípio da Supremacia da Constituição é norteador). (LINS JÚNIOR; SILVA JÚNIOR, 2016). 

Segundo Lima (2013), na década de 1980, os autores portugueses e espanhóis também ficaram submetidos ao desafio de interpretar e expandir os textos constitucionais, o que os levou a confiarem essa tarefa ao Judiciário, como garantia de que os textos seriam aplicados da melhor maneira possível.

Assim, verificam-se as três fases do referido plano de análise determinado por Carbonell, pois, acompanhando o crescimento da contribuição doutrinária, a jurisdição constitucional também cresceu como um fenômeno significativo no Brasil, uma vez que a Constituição de 1988 por meio do art. 103 ampliou o alcance deste instituto com o aumento do número de legitimados para a proposição de ações a serem submetidas ao controle abstrato de constitucionalidade (BARROSO, 2005); assim como, ampliou a jurisdição constitucional com a adoção do controle de inconstitucionalidade por omissão, pelo mandado de injunção ou pela ação direta, a ação declaratória de constitucionalidade e a arguição de descumprimento de preceito fundamental – o que significa maiores poderes ao Supremo Tribunal Federal, tendo em vista sua competência exclusiva para julgar tais ações. 

Ainda, entre os novos legitimados, incorporados pela constituinte para provocarem o STF, estão os partidos políticos, as representações nacionais da sociedade civil e as principais instituições dos Estados-membros, os quais usualmente recorrem à Corte Suprema para solucionarem questão controversa que não conseguiram resolver no Congresso Nacional, de forma que corrompem o processo político-democrático quando a “palavra final” acerca dos casos difíceis se torna a do Poder Judiciário.

Conforme Oscar Vilhena Vieira (1997), o Estado sob o regime democrático-constitucional mantém-se articulado mediante a convivência entre o direito com pretensão de se tornar legítimo, anteriormente reconhecido como básico pelos interesses individuais de cada cidadão, e um poder coercitivo, o qual assegura o respaldo àquele direito buscado pela sociedade e, em concomitância, esse mesmo poder também cria os meios e os articula para que àquele direito seja oferecido de forma eficaz para os cidadãos. 

Por meio dessa assertiva do referido jurista, conseguimos visualizar de maneira prática a regra da maioria como o reconhecimento de um direito básico comum e a proteção de direitos como o poder coercitivo, que promove o respaldo jurídico para que o direito seja garantido. Nessa perspectiva, é possível perceber que a tensão entre o constitucionalismo e a democracia, mesmo com consequências paradoxais, são complementares para que essa forma de governo funcione e conclua seu objetivo. 

Logo, a Constituição de 1988 conferiu ao Poder Judiciário o condão de direcionar o funcionamento ideal da democracia, em meio ao presente paradoxo, por meio da competência exclusiva para o exercício da jurisdição constitucional. Assim, o movimento se desenvolve com forte apoio no ideal de um poder Judiciário interventor por meio de um texto constitucional capaz de impregnar em todo o ordenamento jurídico, de forma que as transformações ocorram em congruência com a supremacia constitucional, de forma que se torna possível enxergar o processo da “constitucionalização do direito”.

Como um reflexo do neoconstitucionalismo, a rejeição ao formalismo caracterizada por princípios de conteúdo aberto e com semântica indefinida favorece a aplicação de técnicas hermenêuticas pelo Poder Judiciário, o que permitiu o desenvolvimento da técnica da ponderação mediante a intensa utilização do princípio da proporcionalidade como recurso para legitimar as decisões proferidas, de modo que as teorias argumentativas também se desenvolveram. Ao ponderar, o intérprete pode se utilizar dos princípios constitucionais para argumentar ao invés de utilizar a própria regra, que consta no texto constitucional, para Flávia Danielle: “Havendo colisão entre princípios, a solução depende da análise do “caso concreto”, para que seja assegurada a solução mais justa, a partir do uso da máxima (ou princípio) da proporcionalidade.”.

Ao se admitir o uso dos princípios constitucionais, mesmo naquelas situações em que as regras legais são compatíveis com a Constituição e o emprego dos princípios ultrapassa a interpretação teleológica pelo abandono da hipótese legal, está-se, ao mesmo tempo, consentindo com a desvalorização da função legislativa e, por decorrência, com a depreciação do papel democrático do Poder Legislativo. Se a própria Constituição não contém regra a respeito de determinada matéria, antes reservando ao Poder Legislativo a função de editá-la, se ele exercer a sua liberdade de configuração e de fixação de premissas dentro dos limites constitucionais, aliás também fornecidos pelos princípios constitucionais, especialmente os formais, a mera desconsideração da regra legal (que, insista-se não se confunde com a interpretação conforme a Constituição, nem com interpretação mediante extensão ou restrição teleológicas, nem, ainda, com a não-aplicação de regra geral a caso particular por meio do postulado da razoabilidade) culmina com a desconsideração do próprio princípio democrático e, por consequência, do princípio da separação dos Poderes. (LINS JÚNIOR; SILVA JÚNIOR, 2016, p. 87.)

A partir da colocação dos juristas, o desenvolvimento do neoconstitucionalismo brasileiro promove um tribunal constitucional de interpretação com enfoque nos princípios constitucionais, o que pode acarretar a desestabilidade da separação dos poderes, da legalidade e do princípio democrático, os quais são os princípios-cerne da Constituição de 1988.

De acordo com Ávila (2009), essa estratégia obriga o ordenamento jurídico a obedecê-la e, ao mesmo tempo, a violá-la, que pode ser complementada por Lima (2013):

A noção de que as constituições baseiam-se preponderantemente em normas-princípios em prejuízo das normas-regra, dá-se margem, assim, a uma “doutrina principiológica”, que se encarrega das distinções entre estas espécies normativas e das peculiaridades da primeira delas, garantindo-lhes positividade, vinculatividade e eficácia positiva e negativa sobre comportamentos públicos e privados. (p. 219)

Logo, sobressai outro paradoxo: a concentração de conteúdo exclusivamente na Constituição, e consequentemente no Poder Judiciário, e a existência de legislações irrelevantes coloca a lógica da supremacia do texto constitucional em debate, o que talvez traga a perda de seu significado, já que a inconsistência de regras em legislações inferiores traduz uma constituição sem um caráter norteador para o ordenamento jurídico, tendo em vista a pouca influência sobre o Poder Legislativo, confirmando o problema metodológico já identificado.

Por isso, para que a supremacia constitucional se mantenha rígida, é necessário que haja o enaltecimento das regras em detrimento aos princípios, tornando os direitos e garantias fundamentais preceituados no art. 5º da Constituição Federal, de fato, legítimos. Logo, o exercício do controle jurisdicional de constitucionalidade desempenha um papel importante para o equilíbrio institucional, de forma que a garantia de direitos o legitima. “Por fim, estabelecer todos esses direitos sem que haja um meio especifico capaz de oferecer remédios legais e instituições independentes para bloquear eventuais violações de direitos também seria insuficiente.”

Assim como pontua Barroso (2005), na reestruturação promovida pela Constituição de 1988, as normas constitucionais e jurídicas foram concebidas com imperatividade, de forma que, em caso de violação ou corrupção das mesmas, o próprio texto constitucional determina como podem ser invocadas com o intuito de realizar os procedimentos específicos de coação para que sejam, de fato, cumpridas. Portanto, confirma-se o protagonismo do poder Judiciário dentro do sistema constitucional democrático. 

Assumindo o paradigma do movimento neoconstitucionalista no Brasil, a figura do magistrado assume o protagonismo central, passando para uma posição de admiração dentro do ordenamento jurídico e dentro da sociedade o que, consequentemente, torna a apreciação ao Direito um ato a ser realizado por meio interpretação e da forma de aplicação de determinado magistrado, logo, resta aos outros Poderes e aos cidadãos a postura de observação, é possível identificar tal postura, por exemplo, do Poder Legislativo, quando as decisões tomadas pelo Congresso Nacional são submetidas ao controle jurisdicional de constitucionalidade, diante da atuação dos Tribunais e da Corte Constitucional. 

Na circulação do poder, o Judiciário se “aproveita” da inércia dos demais Poderes e se diz competente a exercer as competências olvidada pelos demais Poderes. Se apresenta como “superego” da sociedade “órfã” de políticas públicas e de normas. (MAUS, 2000)

Sobretudo, desde 1988, o papel desempenhado pelo Judiciário inclui uma nova interpretação constitucional, sendo uma significativa transformação dentro do constitucionalismo democrático brasileiro. A partir disso, é possível elencar novos princípios que instrumentalizam a interpretação constitucional, quais sejam: o da Supremacia da Constituição, de forma que a interpretação seja realizada conforme seu texto; o da presunção de constitucionalidade das normas, bem como, dos atos do Poder Público e, por fim, os princípios da unidade, da efetividade e da razoabilidade.

A partir dessas modificações, verificou-se que os meios clássicos de interpretação normativa (métodos: gramatical, histórico, sistemático e teleológico), bem como os mecanismos de solução de eventuais conflitos normativos (hierárquico – norma superior prevalece sobre a inferior -, o temporal – norma posterior prevalece sobre a anterior -, e o especial – norma especial prevalece sobre a geral) não seriam suficientes para a realização da complexa interpretação constitucional. (LINS JÚNIOR; SILVA JÚNIOR, 2016, p. 83)

Tais mutações jurídicas configuram o movimento neoconstitucionalista no Brasil, que submeteu ao Poder Judiciário, especificamente à Corte Constitucional brasileira, uma abordagem em que é permitido ao juiz discricionariedade política, conforme George Sarmento Lins Júnior e José Ailton Silva Júnior (2016), discricionariedade trata-se de uma atividade criativa do intérprete em casos difíceis, por exemplo, em que podem ser consideradas mais de uma solução possível e razoável para determinado conflito, de forma que a “racionalidade passa a ser compreendida dentro da argumentação utilizada para resolução de determinadas questões práticas que o Direito deve equacionar.”  

Referências:

Teoria da Decisão Judicial e da Jurisdição Constitucional - Projeto de pesquisa de iniciação científica que participou do programa PIBIC 2018-2019 financiado pelo CNPq, cujo relatório foi elaborado pelo Prof. Dr. Emerson Affonso da Costa Moura e pela orientanda Maria Theresa Bandeira Gonçalves. Nele, foi realizada a filtragem dos julgamentos do STF por meio dos informativos semanais com o intuito de identificar as técnicas de decisão judicial utilizadas, bem como, os tipos de ação em que as técnicas eram empregadas. Logo, o objetivo principal do referido projeto consistiu em conhecer a produtividade e a efetividade da jurisdição constitucional exercida pela Corte Constitucional brasileira, de forma quantitativa e qualitativa.

ÁVILA, Humberto. Neoconstitucionalismo: Entre Ciência do Direito e o Direito da Ciência, 2009.

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil, 2005.

KOERNER; FREITAS, 2013

LIMA, Flávia Danielle Santiago, Ativismo e autocontenção no Supremo Tribunal Federal: uma proposta de delimitação do debate, 2013.

LINS JÚNIOR, George Sarmento; SILVA JÚNIOR, José Ailton. O NEOCONSTITUCIONALISMO NO BRASIL E O PROTAGONISMO DO PODER JUDICIÁRIO: O CASO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2016

MAUS, Ingeborg. O Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na sociedade órfã.  2000.VIEIRA, Oscar Vilhena, A Batalha dos Poderes, 2018.

SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: Riscos e Possibilidades. 2009

VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição como Reserva de Justiça, 1997.