Neste artigo da série sobre presunção de inocência, vamos abordar a sua incidência no ordenamento jurídico de outros países e do Brasil.
Presunção de inocência nas Constituições alienígenas
A Constituição da República Portuguesa de 1976, nº. 2 do art. 27, estabelece que “ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança”, complementado pelo nº 2 do art. 32 dispõe que “todo o arguido se presume inocente até o trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”.
Nota-se, nesse ínterim, que a incidência do princípio da inocência no direito lusitano atrela-se, temporalmente, após o trânsito em julgado da sentença de condenação, extirpando, à primeira análise, a execução provisória da pena, bem como se relaciona com a celeridade do devido processo legal.
No mesmo sentido, a Constituição Italiana positiva a presunção de inocência, conforme o texto positivado em seu art. 27 que o acusado não será considerado culpado até a condenação definitiva, pelo qual mais uma vez relaciona-se a presunção de inocência com o trânsito em julgado da condenação do imputado.
Interessante é a questão da presunção de inocência no ordenamento jurídico francês, tendo em vista que a presunção de inocência não é expressamente prevista pela Constituição da Quinta República. No entanto, a Constituição da França dispõe, em seu preâmbulo, que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 possui vigor e eficácia constitucionais, motivo pelo qual afirma-se, inequivocamente, que a presunção de inocência, enquanto garantia individual, é constitucionalmente assegurada na França, por força do art. 9º, conforme exposto no item 1.1 do presente trabalho.
A Constituição Espanhola de 1978 também adota sistemática diferenciada na abordagem sobre a presunção de inocência, na medida em que inclui tal princípio juntamente com outros direitos e garantias individuais no inciso I do seu art. 24, abstendo-se em relacioná-lo a um momento posterior a condenação definitiva, trânsito em julgado ou outra expressão equivalente.
Por sua vez, a Constituição Alemã de 1949 não estabelece expressamente a presunção de inocência em seu texto. Contudo, através de construção pretoriana do Tribunal Federal Constitucional Alemão, tal garantia encontra-se abrangida no princípio do Estado de Direito, bem como pela dignidade humana, disposta no art. 1º da referida Constituição, ou, ainda, em virtude do reconhecimento constitucional da internalização das normas de Direito Internacional, prevista no art. 25. Cumpre salientar que, muito embora não esteja expressamente elencada na Lei Fundamental Alemã (mas, como exposto, apenas decorre do sistema constitucional), diversas Constituições Estaduais da Federação alemã preveem o princípio em comento expressamente.
No que toca às Constituições Norte-Americanas, no Canadá, há a previsão no Texto Maior (Ato Constitucional de 1982), no primeiro capítulo, item 11, da garantia da presunção de inocência, limitando-a a prova da culpa de acordo com a lei, em uma audiência justa e pública, por um tribunal independente e imparcial. Verifica-se, portanto, que não há vinculação da presunção de inocência à definitividade da decisão judicial condenatório, podendo cessar a presunção caso atingidos os requisitos constitucionais.
De igual forma, a Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos de 1917 estabelece de forma objetiva a presunção de inocência, conforme disposto em seu art. 20, apartado B, não condicionando o término da presunção de inocência ao trânsito em julgado do mandamento jurisdicional, pelo que basta, apenas, a declaração da responsabilidade do imputado pelo juiz da causa (natural).
Embora a Constituição dos Estados Unidos da América de 1787 tenha sido um importante marco na proclamação de direitos fundamentais e democráticos, de influências globais, a Lei Fundamental americana não prevê expressamente a presunção de inocência como garantia dos imputados, dependendo tal reconhecimento da interpretação jurisprudencial quando do julgamento do caso concreto.
Nos Textos Maiores da América do Sul, a Argentina, Chile e o Uruguai não dispõem expressamente sobre presunção de inocência em suas Constituições, existindo correntes doutrinárias, contudo, que defendem a incidência implícita da garantia em análise nas respectivas Constituições, sendo certo o Código de Processo Penal Chileno, em seu art. 4º, prevê a presunção de inocência expressamente.
Noutro giro, as Constituições Peruana, Paraguaia e Venezuelana preveem, em seu texto expresso, a presunção de inocência como garantias individuais aos imputados, contudo, não a condicionam à definitividade da condenação.
Presunção de Inocência como Direito e Garantia Fundamental no Brasil
Em se tratando do atual ordenamento jurídico, baseado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, conjunto de normas jurídicas fundamentais à organização do Estado e de declaração dos direitos e garantias dos indivíduos que irradiada validade para todos os outros instrumentos normativos, prevê o Texto Maior, em seu art. 5º, LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Renato Brasileiro de Lima realiza uma interessante e esclarecedora análise do princípio da presunção da inocência à luz da Constituição da República Federativa do Brasil, relacionando-o com o princípio do devido processo legal, ampla defesa e contraditório, bem como com o disposto nos Tratados Internacionais. Em seu entendimento, tal princípio:
Consiste no direito de não se declarado culpado senão após o término do devido processo legal, em que o acusado tenha se utilizado de todos os meios de prova pertinentes para sua defesa (ampla defesa) e para a destruição da credibilidade das provas apresentadas pela acusação (contraditório). Comparando-se a forma como referido princípio previsto nos Tratados Internacionais e na Constituição Federal, percebe-se que, naqueles, costuma-se referir à presunção de inocência, ao passo que a Constituição Federal em momento algum utiliza a expressão inocente, dizendo, na verdade, que ninguém será considerado culpado (...) não há diferença entre presunção de inocência e presunção de não culpabilidade, sendo inútil e contraproducente a tentativa de apartar ambas as ideias (...).
Nesse sentido, pelo mandamento Constitucional, há expressa vinculação da culpa ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória, quando não for mais possível ao acusado interposição de recursos, tornando a decisão judicial imutável. Contudo, poderia questionar-se qual seria a relação entre a consideração da culpa do imputado – fim da presunção de inocência – com a possibilidade de cumprimento de pena por este.
A resposta a tal questionamento decorre do próprio modelo democrático-constitucional adotado pelo Brasil, oriundo das decisões políticas fundamentais adotadas na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, posto que a liberdade dos cidadãos é a regra, sendo possível apenas a prisão (pena) após a imutabilidade da sentença penal condenatória, como ensina Nucci:
Em primeiro plano, fundado no perfil do estado democrático de direito, deve-se ressaltar constituir a liberdade a regra, no Brasil; a prisão, a exceção. O direito à liberdade, como um dos principais direitos humanos fundamentais, somente pode ser cerceado, de maneira legítima, quando houver a aplicação da prisão-pena, fruto de condenação, com trânsito em julgado.
(...)
Prisão é a privação de liberdade, tolhendo-se o direito de ir e vir, por meio de recolhimento da pessoa humana ao cárcere. A prisão-pena advém da imposição de sentença condenatória, com trânsito em julgado.
O princípio da presunção de inocência no Brasil, portanto, está intrinsecamente relacionado à condição de culpado do imputado, que somente ocorrerá após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Assim, não sendo possível a prisão-pena no curso do processo penal, enquanto não definitiva a decisão judicial condenatória, a prisão seria possível apenas quando fosse verificada a necessidade de se garantir a ordem pública, a ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal, ou em outras hipóteses legalmente previstas que, expressamente, constituem exceções não à regra da presunção de inocência – posto que o imputado será acautelado por motivos outros que não ser considerado culpado -, mas sim ao direito à liberdade constitucionalmente previsto.
Nesse ínterim, defende Rogério Lauria Tucci, no que tange à possibilidade de prisão (não necessariamente de prisão pena) nas decisões colegiadas em segundo, que tal prisão seria possível, desde que prevista uma das hipóteses embasadoras do art. 312 do CPP, uma vez que seria necessário que “o ato decisório proferido pelo órgão jurisdicional colegiado de segundo grau, simultaneamente com a condenação, decrete a prisão preventiva com o supedâneo num dos requisitos estatuídos no art. 312 do CPP”.
Torna-se evidente, portanto, que, de acordo com a tese acima exposta – mais garantista -, a presunção de inocência, prevista no art. 5º, LVII, da Constituição Federal de 1988, deveria ser interpretada à luz dos incisos LXI e LXVI do mesmo dispositivo constitucional, observado os requisitos dispostos no art. 312 do CPP.
A presunção de inocência, em decorrência do art. 5º, LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a despeito dos efeitos para execução antecipada da pena, não impede, como elencado acima, a decretação ou a manutenção da prisão cautelar, caso demonstrada a necessidade concreta e presentes os requisitos autorizadores previstos no art. 312 do Código Processo Penal, sem prejuízo de ser reavaliado, a qualquer tempo, a fim de evitar-se o cumprimento da pena sem sentença transitada em julgado.
Assim, a presunção de inocência relaciona-se com status de (não) culpado em que o imputado apenas passará a ostentar após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, não obstante seja controvertida a questão do início da execução provisória da pena privativa de liberdade que poderá, ou não, estar condicionada a tal qualidade de culpado.
Para além da discussão acerca da relação entre presunção de inocência e a execução provisória da pena privativa de liberdade, o princípio da presunção de inocência também causa discussão quando da irradiação de seus efeitos pragmáticos em plano administrativo, como bem observam Marcelo Novellino e Dirley da Cunha Junior:
No plano administrativo, a presunção de não culpabilidade veda a exclusão de candidato de concurso público pelo simples fato de responder a inquérito ou a ação penal sem trânsito em julgado da sentença condenatória (STF – RE 559.135 AgR). No caso de policiais civis ou militares, tendo em vista a natureza da função exercida, não viola a garantia a vedação legal de “inclusão de oficial militar no quadro de acesso à promoção em razão da denúncia em processo criminal (STF – RE 459.320 AgR). No mais, o Supremo decidiu não ter “capacitação moral para o exercício da atividade policial o candidato que está subordinado ao cumprimento de exigências decorrentes da suspenção condicional da pena” (Lei 9.099/95, art. 89), motivo pelo qual se revela legítimo ter em conta tal ocorrência na caracterização da inidoneidade moral (RE 568.030).
Não há que se olvidar, portanto, que o princípio-garantia da presunção de inocência urge para limitar o poder de punir do Estado, impedindo que este, arbitrariamente, invada os direitos e garantias fundamentais do indivíduo pelo simples fato de estar sendo processado criminalmente, a despeito do princípio do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
Contudo, sob o aspecto pragmático, verifica-se controvérsia doutrinária e jurisprudencial sobre a amplitude, efeitos e consequências de se considerar o indivíduo culpado apenas após a definitividade da decisão penal que o condenou, irradiando efeitos para âmbitos não eminentemente criminais, tal como a realização de concursos públicos, os quais poderão ter aplicações práticas diferentes a depender do caso concreto e, principalmente, do órgão julgador de tal lide.
Não obstante toda discussão prática da aplicação do princípio da presunção de inocência no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista o regramento adotado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e da interpretação doutrinária e jurisprudencial acerca dos direitos e garantias fundamentais, como garantia fundamental que é, tal princípio tem sua aplicação imediata e direta, independentemente de norma infraconstitucional para dispor sobre sua aplicabilidade ou eficácia, bem como deverá ser aplicado em sua máxima efetividade.
Outrossim, os direitos e garantias fundamentais, além da aplicabilidade imediata e da interpretação que garantia sua máxima efetividade, também atrai a aplicação do princípio da vedação ao retrocesso social, posto que “sendo os direitos fundamentais o resultado de um processo evolutivo, (...) não podem ser suprimidos, ou abolidos ou enfraquecidos”.
Por fim, poderia surgir a dúvida se a o princípio da presunção de inocência seria um direito ou uma garantia fundamental. Como cediço, direito é uma norma de conteúdo declaratório da existência de um interesse, benefício ou vantagem; enquanto as garantias são normas de conteúdo assecuratório que servem para assegurar ou garantir o direito declarado.
Nesse sentido, a presunção de inocência possui vertentes como direito e garantia, uma vez que possui um conteúdo declarado ao imputado de não ser considerado culpado enquanto não definitivamente condenado por decisão judicial penal, bem como possui conteúdo assecuratório do próprio direito que declara e ao direito à liberdade de locomoção, evitando que seja realizada o acautelamento definitivo do acusado em violação aos direitos assegurados.
Referências:
BARBAGALO, Fernando Brandini. Presunção de Inocência e recursos criminais excepcionais: em busca da racionalidade no sistema processual penal brasileiro. E-book. Dados Eletrônicos – Brasília: TJDFT, 2015. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/institucional/escola-de-administracao-judiciaria/plano-instrucional/e-books/e-books-pdf/presuncao-de-inocencia-e-recursos-criminais-excepcionais>. Acesso em 30 jul. 2018.
BARBAGALO, Fernando Brandini. Presunção de Inocência e recursos criminais excepcionais: em busca da racionalidade no sistema processual penal brasileiro. E-book. Dados Eletrônicos – Brasília: TJDFT, 2015. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/institucional/escola-de-administracao-judiciaria/plano-instrucional/e-books/e-books-pdf/presuncao-de-inocencia-e-recursos-criminais-excepcionais>. Acesso em 30 jul. 2018.
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CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 10ª Ed. Salvador: JusPodivm, 2016.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Brasília, Distrito Federal: Planalto Central. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 08 out. 2018.
LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal Comentado. 2ª Ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 478.
NUCCI, Guilherme de Souza. Prisão, medidas alternativas e liberdade: comentários à lei 12.403/2011. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 23.
CALEFFI, Paulo Saint Pastous. Presunção de Inocência e execução provisória da pena no Brasil: uma análise crítica e impactos na oscilação jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.
Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.
TUCCI, Rogério Lauria. Limitação da extensão de apelação e inexistência de execução penal provisória. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 9, n. 33, p. 9-62, 2001.
Art. 5º, LXI, CFRB/1988. Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
Art. 5º, LXVI, CFRB/1988. Ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança
NOVELINO, Marcelo. JÚNIOR CUNHA, Dirley da. Constituição Federal Comentada. 8ª Ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 123.
Art. 5º, §1º, CRFB/88. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 10ª Ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 540.