TizianaCantone, 31 anos à época, residente em Nápoles (ITA)
Em Abril de 2015, Tiziana Cantone compartilhou pelo WhatsApp uma série de vídeos íntimos do qual ela era protagonista. A mensagem com o material foi enviada para cinco pessoas, incluindo seu namorado Sérgio Di Paolo. Conforme dados obtidos por reportagem da BBC Internacional, no ano de 2017, Tiziana nutria um relacionamento conturbado com Sérgio, além de que os vídeos enviados mostravam a moça tendo relações sexuais com diversos parceiros.
Apesar da confiança que possuía nos destinatários das imagens, Tiziana foi surpreendida pelo compartilhamento em massa de seus vídeos. O material foi rapidamente disseminado e hospedado em sites de conteúdo adulto, bem como espalhados por diversas redes sociais. No vídeo, a vítima falava uma frase à pessoa que realizava a gravação, que demonstrava sua anuência, qual seja: “Você está fazendo um vídeo? Bravo” (BBC, 2017). Ocorre que, mesmo a partir do consentimento em permitir as gravações, Tiziana não permitiu o compartilhamento de sua intimidade da forma como foi feita.
Segundo dados veiculados pelo site O Novelo, o vídeo íntimo foi publicado em mais de 100 mil páginas ao longo do mundo, ultrapassando o patamar de 01 milhão de visualizações. A partir do alcance e proporção que o material tomou, Tiziana passou a ser comentada em todo o mundo. No entanto, a imprensa italiana foi além. Ao mesmo tempo que divulgaram seus vídeos de forma incessante, também transformaram as palavras proferidas por Tiziana em meme, expressão meme de Internet é usada para descrever um conceito de imagem, vídeos, relacionados ao humor, que se espalha via Internet. Fotos da moça com os dizeres se tornaram foco em diversas páginas de humor na internet e estamparam camisetas e canecas. (LOPES, Jus Brasil, 2016)
Em entrevista ao BBC, em 2016, Teresa Petrosino, uma amiga próxima de Tiziana, declarou que a moça estava desolada, sem saber o que fazer. Apesar das amigas nunca terem falado sobre detalhes dos vídeos, Teresa diz que Tiziana estava sofrendo e pensava muito sobre a permanência eterna do material na internet. Pensava que seu futuro marido e filhos sofreriam consequências da exposição e que aquela seria uma marca para sempre. "Ela não queria sair de casa porque podia ser reconhecida. Ela descobriu que o mundo virtual e o mundo real eram a mesma coisa", explica Teresa.
Tiziana, nesse cenário, decidiu retornar à cidade natal, retornar para a pequena cidade em que sua família residia, conta a mãe da vítima, Maria Teresa Giglio, em declarações ao BBC. "Sua vida foi arruinada diante de todo mundo", diz a mãe. "As pessoas riam dela, faziam paródias em sites de pornografia. Ela era chamada de nomes infames.", continuou Maria Teresa. Mas mesmo diante de toda essa repercussão negativa vinculada pela mídia e pelas pessoas, a vítima resolveu ingressar judicialmente buscando a exclusão dos vídeos não consentidos da web.
Após um ano de processo judicial, em agosto de 2016, o Tribunal responsável pela demanda determinou a retirada dos vídeos íntimos pelos provedores da internet. Não obstante, Tiziana foi condenada a arcar com o prejuízo de 20 mil euros referentes às custas legais de cinco diferentes sites. Isso ocorreu porque o Tribunal considerou que a vítima permitiu a gravação e, portanto, deveria ser penalizada. (VILLAR, 2016) Após a referida sentença, Tiziana ingressou em processo depressivo que culminou, um mês depois, em seu suicídio, conforme afirmado pelo site O Novelo, em 2016.
No dia 13 de Setembro de 2016, segundo cobertura do BBC, Tiziana se enforcou quando sua mãe foi para o trabalho. A tia da vítima procurou socorrê-la, mas não foi possível mantê-la em vida. A moça foi mais uma vítima fatal, cuja morte poderia ter sido evitada caso houvesse uma comoção social para ajudá-la, ao invés de crucificá-la. Os institutos patriarcais – seja a mídia, conforme explicado neste parágrafo, seja o sistema de justiça, consoante capítulo subsequente – são ferramentas para a perpetuação do machismo que, em outros tantos casos como o de Tiziana, tiveram um desfecho fatal.
É necessário, portanto, ampliar o debate sobre a influência que a mídia, enquanto produtora de julgamentos morais tem na sobrevivência das mulheres vítimas de Pornografia de Vingança. O veículo midiático representa, hoje, uma releitura do Tribunal de Inquisição firmado durante a Idade Média. O Tribunal de Inquisição, também chamado de Santa Inquisição, foi um método de julgamento dirigido pela Igreja Católica Romana e inaugurado no Século XII. Tratava-se de um tribunal religioso, cujo objetivo era condenar todos aqueles que se insurgiam contra os dogmas pregados pela Igreja
Em uma interpretação analógica é possível extrair uma íntima relação entre a culpabilização promovida pela mídia em relação às mulheres que se expressam de forma contrária à ordem patriarcal e a culpabilização direcionada às acusadas de subverter a ordem católica na vigência da Santa Inquisição.
Na Idade Média, uma das classes mais perseguidas pelo Tribunal do Santo Ofício foi a das Bruxas. A utilização do termo no feminino se justifica pelo fato de a maioria das consideradas “praticantes de bruxaria” serem mulheres. (ANGELIN, 2016) Á época, foi publicada uma obra intitulada de “Malleus Maleficarum”, posteriormente, traduzida como “Martelo das Bruxas”, que consistia em uma espécie de manual que orientava os cristãos como reconhecer uma bruxa – a partir de características físicas consideradas símbolos do demônio, como sardas ou verrugas, conforme elucida Angelin (2016). Nesse sentido, Pompeu (2015) afirma que os autores da obra:
“Não pouparam esforços para mostrar que a mesma mulher que provocou a expulsão do homem do paraíso ainda era uma ameaça presente. A identidade com o pecado original, principalmente na história do cristianismo, foi um fardo pesado para a mulher até o século XVII.” (POMPEU, 2015)
No contexto da “caça às bruxas”, as mulheres consideradas praticantes de bruxaria eram condenadas por diversos pecados, entre eles destacava-se a prática de crimes sexuais contra os homens. (ANGELIN, 2016) Diante de mapeamentos realizados na Europa, foi estimada que um total de 9 milhões de pessoas foram acusadas, julgadas e mortas pelo Tribunal de Inquisição nesse período, sendo que cerca de 80% eram mulheres. (POMPEU, 2016). Durante anos esse método de julgamento proposto pela Inquisição angariava inúmeras pessoas em praças públicas para aguardar as punições – que geralmente consistiam em fogueiras ou enforcamentos.
A coletividade atacava a mulher acusada de cometer bruxaria de formas variadas, desde palavras de ódio até arremessos de objetos. (POMPEU, 2016) Esse ritual que durou dezenas de anos, se expressa de outra forma hoje: a mídia culpabiliza a persegue as mulheres que expressam sua sexualidade, que destoam da alçada que lhes é destinada e que subvertem a ordem de dominação masculina. A população, por sua vez, permanece atuando da mesma forma: reafirmam o discurso do patriarcado e utilizam ofensas, palavras de ódio e piadas para culpabilizar a vítima de violência de gênero, como é o caso do julgamento proferido às vítimas de revengeporn.
Embora a comparação realizada seja esdrúxula e não literal, é possível observar que a mídia vem ganhando esse papel enquanto instituição a serviço do patriarcado. Ao normalizar condutas como o compartilhamento não consentido de material íntimo alheio e crucificar a sexualidade feminina – com discursos como “a mulher tem que se dar ao respeito”; “a mulher não deveria ter confiado sua intimidade à outra pessoa”, etc. – a mídia vem fortalecendo e impulsionando a manutenção de preceitos machistas que agravam, potencialmente, a saúde mental das vítimas de violência de gênero.
A história de Tiziana, especificamente, representa a força do veículo midiático e de como ele pode ser determinante na vida de uma mulher vulnerabilizada pela ocorrência da violência de gênero. Conforme observado pelos noticiários analisados e mencionados anteriormente, a banalização da intimidade e dos sentimentos de Tiziana foi deveras relevante para o seu óbito. Sendo assim, diante da comoção com a sua morte, conforme reporta o BBC, o tom do debate em torno da pornografia e da privacidade passou a demonstrar algumas mudanças na Itália, o que tem um grande significado.