A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reformou acórdão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) que, ao extinguir ação monitória movida por uma empresa de navegação, entendeu – como defendido pela empresa ré – que deveria ser respeitada a cláusula de arbitragem prevista no contrato de fretamento de embarcações firmado entre elas.
Para os ministros, a ré, ao propor anteriormente processo judicial cautelar de sustação de protesto e de inexigibilidade da mesma dívida discutida na ação monitória – no valor de mais de R$ 18 milhões –, tacitamente abriu mão da cláusula arbitral.
O TJMS considerou que não poderia ser acolhido o argumento de renúncia tácita à convenção de arbitragem, pois a empresa ré suscitou a cláusula arbitral em seus embargos monitórios e em pedido preliminar nas razões recursais.
Ainda segundo o tribunal estadual, caso não reconhecesse a convenção arbitral, o Judiciário estaria rescindindo de forma indevida uma cláusula livremente aceita pelas partes, o que representaria ofensa ao princípio pacta sunt servanda – segundo o qual os contratantes são obrigados, nos limites da lei, a cumprir o pactuado.
Conduta contraditória
Relator do recurso da empresa de navegação, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino explicou que, segundo a teoria dos atos próprios (venire contra factum proprium), a adoção de determinada conduta por uma das partes da relação negocial pode fazer surgir na outra parte a crença de que não se exercitará determinado direito ou, ao contrário, que ele será exercido nos termos da postura anterior.
"Trata-se da exigência de uma postura ética dos contratantes ao longo de toda a relação negocial, que está plenamente assente na jurisprudência deste tribunal superior, no sentido de não ser possível à parte adotar condutas contraditórias", apontou o ministro.
No caso dos autos, Sanseverino considerou inadmissível que uma das partes proponha ações na Justiça estatal, renunciado tacitamente à arbitragem – e induzindo a outra parte a crer que o litígio entre elas será resolvido no Poder Judiciário –, e, diante da ação posteriormente ajuizada pela parte contrária, alegue a existência de cláusula arbitral para escapar das vias judiciais.
"Deve ser enfatizado, finalmente, que a circunstância de não ter havido renúncia expressa é de todo irrelevante, pois o que se veda é a conduta contraditória da recorrida (nemo potest venire contra factum proprium), em clara violação ao princípio da boa-fé objetiva", concluiu o ministro, ao determinar o retorno dos autos às instâncias ordinárias para a análise do mérito da ação monitória.
Número do Processo
RECURSO ESPECIAL Nº 1894715
Ementa
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO MONITÓRIA. CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM. ALEGAÇÃO PELA PARTE DEMANDADA QUE ANTERIORMENTE HAVIA PROPOSTO DUAS AÇÕES JUDICIAIS CONTRA A DEMANDANTE. IMPOSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO DA CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. VEDAÇÃO DERIVADA DO "VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM". CONCREÇÃO DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. DEVER DE COERÊNCIA DO CONTRATANTE COM SEUS ATOS ANTERIORES.
1. Controvérsia em torno da validade e eficácia da cláusula compromissória constante de contrato de prestação de serviços de afretamento de embarcações para o transporte fluvial de minério de ferro a granel, tendo a outra parte proposto, anteriormente, ação cautelar de sustação de protesto referente às faturas cobradas na presente ação monitória seguida de ação declaratória de inexigibilidade da dívida.
2. Conduta contraditória da parte recorrida, que, anteriormente, apesar da existência de cláusula compromissória, havia proposto duas demandas conexas perante o Poder Judiciário.
3. Impossibilidade desse contratante invocar a existência da cláusula arbitral, requerendo a extinção de ação monitória proposta pela outra parte, com fundamento no art. 485, VII, do CPC/2015.
4. Aplicação da 'teoria dos atos próprios', como concreção do princípio da boa-fé objetiva, sintetizada no brocardo latino 'venire contra factum proprium', segundo a qual ninguém é lícito pretender fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior na mesma relação negocial.
5. Precedentes do STJ.
6. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
Acórdão
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a) Ministro(a) Relator(a).
Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília,
17 de novembro de 2020.
Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO
Relator
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Fonte
https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/21122020-Parte-que-dispensou-arbitragem-nao-pode-invoca-la-em-outro-processo-sobre-o-mesmo-contrato.aspx