A Pornografia de Vingança Enquanto Violência de Gênero

A violência, seja, sempre foi utilizada como ferramenta para punir os indivíduos que agissem em desconformidade com determinado preceito ou ideologia. (PEGORER, ALVES. 2013, p. 02) Quando se analisa a violência de gênero, deve-se partir do mesmo pressuposto, vez que essa consiste no exercício de um poder com a finalidade de manter o sistema de exploração patriarcal vigente, conforme afirmam Pegorer e Alves (2013, p. 02). A partir da análise da ocorrência e fundamentação dessa forma de violência, a Pornografia de Revanche ganha destaque e assume grandes proporções, tendo em vista que se caracteriza como um mecanismo deveras violador em relação ao sexo feminino – tendo em vista a fluidez tecnológica de que o fenômeno faz uso.

Insta salientar, nesse tópico, que, embora as violências físicas sejam dotadas de maior visibilidade por conta das lesões aparentes (e da regulamentação legal clara), a violência psicológica e moral alcançam números alarmantes no Brasil, sendo certo que correspondem a aproximadamente 31% das denúncias registradas na Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres. Apesar de não acarretarem em marcas físicas evidentes, a violência psicológica e moral compromete de forma potencial a saúde mental e física de suas vítimas. Conforme a Organização Mundial da Saúde, a violência psicológica é a forma mais comum de agressão à mulher, sendo precursora de várias outras (como a revengeporn tratada neste trabalho e o feminicídio, faceta mais extrema da violência contra a mulher). Tendo em vista a ocorrência de alguns casos, que serão analisados oportunamente neste trabalho, cujos efeitos incluem isolamento, estágio depressivo e até suicídio das vítimas, o fenômeno da RevengePorn tem assumido maior relevância nos âmbitos midiático e jurídico, direcionando os holofotes para a complexidade do fenômeno, bem como sua origem. 

As peculiaridades do fenômeno da Pornografia de Vingança apontam para a clara persistência da supremacia social do gênero masculino em relação ao feminino. Independente dos discursos de pluralismo, tolerância e repúdio à violência de gênero que vem se firmando (cada vez com mais força), a estrutura patriarcal encontra-se tão enraizada, que culmina na manutenção dessas ferramentas de dominação materializadas por intermédio da violência de gênero.

Assim sendo, torna-se possível compreender a persistência dos julgamentos sociais negativos sobre o comportamento das vítimas mulheres, mesmo no contexto moderno de defesa da liberdade de expressão e disposição individual do próprio corpo. Isso acontece porque a subjetividade presente no meio virtual também se encontra permeada pela moralidade e suas questões afetas de gênero (SILVA; PINHEIRO. 2017. P. 04)

No que toca à Pornografia de Revanche, percebe-se que o agressor assume a posição de dominador e até mesmo dono do corpo e da sexualidade da vítima, isso, pois viola a intimidade feminina de forma deliberada, ao realizar a publicação de material gráfico íntimo sem o seu consentimento. Dessa forma, a partir de discursos socioculturais e religiosos - que,  conforme elucida Beauvoir, são essencialmente responsáveis pela inferiorização social e determinação da posição que ocupa a mulher. A autora chama atenção para passagens do Corão, livro religioso muçulmano, bem como da história bíblica que denotam tal dicotomia. - que condenam o comportamento da vítima em permitir a gravação, promove-se a sua culpabilização, intensificam nela o sentimento de culpa e autopunição, o que a impede, inclusive, de perceber que está sofrendo da violência de gênero.

É muito comum, assim, a partir da vinculação de notícias pela mídia e da interpretação dos telespectadores, que seja promovida uma espécie de justificação em torno da prática da violência de gênero. Ocorre, nesse sentido, uma clara inversão da culpa, tendo em vista que a vítima passa a ser condenada por aquilo que sofreu. Tal inversão é baseada não só na reprovação social sobre o ato da vítima de partilhar sua intimidade e permitir a filmagem ou fotografia de seu corpo, quando é o caso, mas principalmente ao que toca ao exercício de sua sexualidade de forma livre e prazerosa.

A violência de gênero possui, ainda, um fator muito determinante para a sua propagação: a partir da vulnerabilização da vítima, promove-se a naturalização do comportamento do agressor, determinando que apenas a vítima poderia ter evitado tal mazela. O senso comum atribui à mulher as mais diversas nuances de culpa, buscando canalizar nela a origem de toda a violação de sua própria privacidade. Pautam-se, portanto, no mito da feminilidade e importam-se mais com a violação dos limites atribuídos historicamente à sexualidade da mulher do que com o ato de violência perpetrado contra ela.

Ademais, à mulher vítima é atribuída a culpa pela escolha errônea de seu companheiro, bem como pelo próprio exercício de sua sexualidade, uma vez que tal conduta foge dos limites impostos para o gênero feminino, quais sejam a castidade, recato e submissão. O status quo masculino, por outro lado, permanece intacto e inquestionável, com base em sua “natureza biológica” que retira de si qualquer responsabilidade pela “ousadia feminina”. 

Certa vez, contou Rosie Marie Muraro, às 8 horas da manhã, Marta Suplicy ensinou as mulheres a se masturbar: “Você levanta a roupa e procura um grãozinho”. Isso em rede nacional! Pela novidade, as pessoas ficavam chocadas, interessadas, curiosas. Cada vez que Marta ensinava uma técnica nova, no dia seguinte, em algumas delegacias do país, apareciam mulheres com o rosto ferido. Mulheres do povo que assistiam aquilo na televisão e eram surradas pelos maridos, que lhes diziam: “Sua puta! Onde é que você aprendeu isso?”. A delicadeza do assunto dividia opiniões, sendo que a maior parte das mulheres agradecia a oportunidade de ser esclarecida e, muitas vezes, de ter sua vida transformada. (CARMO, 2011, p. 360)

A promoção da culpa no interior das vítimas é, portanto, fator fundamental para a ocorrência da violência de gênero, tendo em vista que a nutrição desse sentimento se torna um agravante nessas situações – o desprezo social atrelado ao martírio psicológico ao qual a vítima se submete pode resultar em efeitos devastadores. É mister lembrar, ainda, que a violência de gênero desconsidera fronteiras entre classes sociais, países desenvolvidos e contingentes étnico-raciais distintos, sendo certo que incide independentemente desses fatores. No entanto, não há de se ignorar que a violência de gênero perpetrada sobre as mulheres se comporta de maneiras distintas diante de fatores étnico-raciais e sociais, podendo ser atenuada ou potencializada a depender das características da vítima.

No contexto de um desenvolvimento centrado no ser humano e, portanto, da incorporação das mulheres na era dos direitos, não se pode admitir a violência de gênero, da mesma forma como não se pode ser conivente com a violência de raça/etnia e de classe social, os três pilares da estrutura social brasileira. (...) Estamos cientes de que as lealdades de raça/etnia e de classe social impedem a união de todas as mulheres e de que, por conseguinte, devemos enfrentar estas três contradições simultaneamente. Tentamos adotar este procedimento cotidianamente. Esperamos, desta maneira, apontar para o leitor um caminho de autonomia, oferecendo-lhe não apenas dados e sua interpretação teórica, mas um instrumental analítico que o capacitara a esquadrinhar outras ocorrências violentas vitimizadoras, potencial ou concretamente, de mulheres. (SAFFIOTI, ALMEIDA, 1995, Apresentação)

Nesse contexto, a partir da análise de dados colhidos pelo Mapa da Violência, é possível analisar que o número de homicídios de mulheres negras aumentou em 54%, ao passo que analisando o mesmo período, o homicídio de mulheres brancas foi reduzido no patamar de 9,8%. (QUEIROZ, 2016) Essa dicotomia gritante revela que a violência contra mulheres, além da relação com gênero, tem também raízes no racismo. Nessa mesma perspectiva, Djamila Ribeiro, autora e ativista do feminismo negro, destaca o debate acerca das diversas formas de ser mulher, ao tratar de intersecções, como raça, orientação sexual e identidade de gênero, determinando quais as vozes são ou não legitimadas. (RIBEIRO, 2017, p. 21)

Dúvida não há de que qualquer mulher está sujeita ao machismo estrutural. Não obstante, dentro da classe feminina existem setores mais vulnerabilizados, como é o caso das mulheres negras. Ribeiro utiliza o conceito do Outro de Simone de Beauvoir para determinar que as mulheres negras são o Outro do Outro.  Isso, pois “por não serem nem brancas e nem homens, ocupam um lugar muito difícil na sociedade supremacista branca por serem uma espécie de carência dupla, a antítese de branquitude e masculinidade”. (RIBEIRO, 2017, p. 39) A concepção Beauvoriana do “outro” determina que a mulher não se autodetermina, mas se determina em função da determinação masculina. É concebida através do olhar do homem, sendo confinada a uma posição de confinamento a partir da hierarquia masculina.

A partir da identificação de quem detém o poder dentro da estrutura patriarcal e racista persistente, é possível verificar a interseção vulnerável na qual as mulheres negras estão inseridas. O homem branco, por sua vez, determina seu local na sociedade e, a partir de sua perspectiva, determina qual o local que cada uma das outras classes - o homem negro, a mulher negra, a mulher branca – irão posicionar-se. Essa conduta, então, acaba por legitimar a opressão aos sujeitos diferentes, bem como resulta no agravamento da violência de gênero para as mulheres negras que, além de serem afetadas pelo machismo, são afetadas pelo racismo. 

Fazendo o questionamento de quem tem direito à voz numa sociedade que tem como norma a branquitude, masculinidade e heterossexualidade, o conceito se faz importante para desestabilizar as normas vigentes e trazer a importância de se pensar no rompimento de uma voz única com o objetivo de propiciar uma multiplicidade de vozes. (RIBEIRO, 2017, Sinopse)

Além disso, a violência de gênero também tem seus efeitos variados quando perpetradas contra mulheres de situações socioeconômicas díspares. Não se trata de uma ponderação de sofrimentos ou competição sobre quem é mais atingida, mas é preciso determinar diferenças essenciais para o entendimento desse tipo de violência. Assim como as mulheres negras são vulnerabilizadas essencialmente – por estarem inseridas em uma lógica de racismo institucional -, as mulheres pobres também estão em situação de desvantagem. 

A independência econômica traz ferramentas eficazes para a insurgência feminina contra a dominação masculina. Isso, pois, a autonomia financeira da mulher, por si só, já representa uma quebra dos padrões delimitados na infância e que se perpetuam até a fase adulta – a mulher é constantemente “treinada” a servir aos afazeres domésticos, enquanto esperam do homem o sustento e a retribuição financeira. Desse modo, as mulheres que possuem a desejada autonomia econômica, tornam-se, de certa forma, menos vulneráveis quando em comparação com as mulheres cuja dependência vigora em relação ao companheiro, marido ou pai. 

No contexto de uma sociedade patriarcal, em regra, torna-se mais viável para uma mulher que possui autonomia financeira denunciar determinados tipos de violência do que para aquelas que nutrem certa hipossuficiência. A partir do momento que a figura feminina é associada à independência econômica, há um rompimento com a lógica patriarcal, conferindo a essa mulher uma situação de maior privilégio. Não se deve, contudo, promover qualquer generalização acerca dessa situação, sendo completamente possível que mulheres financeiramente autônomas não consigam livrar-se da violência, haja vista que o machismo intrínseco atinge todas as categorias de mulheres. 

Em um matrimônio, por exemplo, a partir do alcance da independência econômica, os homens sentem-se ameaçados pela perda de controle sobre as mulheres, rompe-se a ideia de que a mulher é disposta como uma propriedade masculina. Para recuperar o controle, a dominação patriarcal se reconfigura em torno do sexo, produzindo uma condição social e pública de subordinação sexual que segue as mulheres para o mundo público – como é o caso da exposição de material íntimo de forma não consensual por ex-companheiros. Essa situação, bem como as informações desenvolvidas ao longo deste capítulo leva à conclusão de que a Pornografia de Vingança é uma forma contemporânea de violência de gênero. 

O que se pretende é determinar as diferentes mazelas e problemáticas advindas da violência de gênero – em especial da RevengePorn -, partindo da ideia de que não é possível englobar todas as categorias de mulheres em uma só classe. Por óbvio, todavia, não se busca fazer qualquer distinção ou gerar discriminação entre o sexo feminino, o que se objetiva é justamente o oposto: a partir da delimitação de diferenças e graus de preconceitos, busca-se promover a empatia e sororidade entre as mulheres, bem como contemplar a cooperação e união entre as tantas sobreviventes diárias da violência de gênero.