O Controle de Constitucionalidade como Estratégia Institucional da Suprema Corte

Ao Supremo Tribunal Federal ficou o cargo de assumir o papel de órgão responsável pela padronização da racionalidade jurídica e também, por conseguinte, dos entendimentos e da doutrina, relacionada às leis federais e à Constituição Federal. “Em qualquer caso, havendo controvérsia acerca da interpretação de uma norma constitucional, a última palavra é do Judiciário.”. Isso, para concluir o estabelecimento e a força de um regime democrático e aproximar o Poder Judiciário da sociedade civil. 

Não se trata simplesmente da ampliação objetiva das funções do Judiciário, como aumento do poder da interpretação, a crescente disposição para litigar ou, em especial, a consolidação do controle jurisdicional sobre o legislador, principalmente no continente europeu após as duas guerras mundiais (MAUS, 2000, p. 185)

Nesse contexto, o campo de atuação do Judiciário expande seu alcance, que dotado da confiança recebida pela Constituição de 1988, avança com autonomia dentro do ordenamento jurídico e do ambiente público, por meio do processo interpretativo e decisório atribuído como função exclusiva, no que tange à revisão dos atos dos outros poderes e das legislações infraconstitucionais. 

O controle de constitucionalidade das leis tornou-se um procedimento costumeiro dentro da jurisdição após a sentença no caso Marbury vs. Madison em 1803 ),(a adoção do controle de constitucionalidade após 1803 foi possível devido a John Marshall à época presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos durante o caso difícil Marbury vs.Madison. Considerado o principal autor e intelectual da prática da argumentação, que permitiu a criação do controle judicial de constitucionalidade no país) uma vez que o juiz responsável pelo julgamento, William Marbury, declarou o Poder Judiciário – e também se autodeclarou – como competente para analisar a constitucionalidade das leis e dos atos dos Poderes Legislativo e Executivo, algo inédito à época.

A ascensão do sistema de controle judicial de constitucionalidade norte-americano originou-se da autoafirmação do Poder Judiciário e da formação do sistema político do país. Nele, os juízes obtinham vitaliciedade, de forma que não se tem o monopólio da decisão sobre inconstitucionalidade, sendo tomadas a partir de casos concretos, assumindo um sistema de controle difuso) (SILVA, 2009). 

O controle de constitucionalidade, então, torna-se “conveniente” (adjetivo utilizado por Virgílio Afonso da Silva por considerar prudente desconfiar dos poderes e prever mecanismos para controlá-los) com a finalidade de fiscalizar os Poderes políticos e de reproduzir a intenção da soberania popular contida nos princípios constitucionais por meio da interpretação constitucional elaborada por magistrados, de forma que a validação das leis se torna um reforço para a manutenção dessa supremacia. No Brasil, esse controle assume um caráter eclético que mescla características dos modelos norte-americano e europeu.

Assim, o controle de constitucionalidade assume um caráter judicial por conferir aos juízes o condão de revisar para validar qualquer incompatibilidade e inconciliável embate entre os outros poderes políticos com base na Constituição, de forma que o texto constitucional assume um cargo de preferência em detrimento às ações dos agentes políticos (SILVA, 2009). Nesse sentido, pode-se dizer que o procedimento decorre da Supremacia da Constituição bem como de seu caráter vinculante, de forma lógica e natural. 

Porém, essa supremacia, herdada como princípio maior por influência do sistema americano, não assume dependência em relação ao controle de constitucionalidade, isto é, a supremacia não depende do exercício do referido controle para que seja reconhecida sua hierarquia diante das leis infraconstitucionais. 

Silva (2009), baseado no controle constitucional preventivo na França, parafraseia Pontes de Miranda ao dizer que o controle “judicial” de constitucionalidade é apenas uma das formas de manter uma constituição rígida e suprema. Logo, reafirma a “conveniência” antes dita, o que se contrapõe à decorrência lógica sugerida, e complementa tal assertiva ao constatar que esse tipo de procedimento é implementado como uma questão prática, mas também política, de forma que pertence ao raciocínio jurídico-formal sem um debate justificado acerca de suas consequências para o desenho institucional.

Assim, podemos reconhecer que, como consequência dessa conveniência, houve uma abertura permissiva para que o Poder Judiciário brasileiro, especificamente a Corte Constitucional, concretizasse a função interpretativa e decisória por meio de um comportamento estratégico intencional de seus intérpretes. Além disso, essa perspectiva estratégica depende de uma combinação de fatores jurídicos compostos também pela intenção do legislativo e de precedentes contidos no próprio texto constitucional.

A partir da percepção de um comportamento estratégico por parte das instituições juntamente com a Corte para constitucionalizar o Direito, conseguimos compreender melhor a assertiva de Ávila mencionada no tópico anterior de que “essa estratégia obriga o ordenamento jurídico a obedecê-la e, ao mesmo tempo, a violá-la”, no que tange ao texto constitucional, uma vez que as sentenças proferidas pelo Supremo passam a carregar eficácia vinculante diante de todo o ordenamento, como será exposto em seguida.

Para Gomes Neto (2015), esse modelo de comportamento judicial estratégico acontece de maneira sofisticada e indireta, o que dificulta traçar as reais preferências dos intérpretes, uma vez que, como será exposto adiante, suas decisões e entendimentos são organizados previamente.

O modelo estratégico procura identificar os vários interesses conflitantes enfrentados pelos juízes quando elaboram suas decisões, pois, em essência, procura explorar o papel que a política desempenha no processo decisório judicial. (GOMES NETO, 2015, p. 55)

Para a concepção estratégica, os magistrados não decidem sempre da forma como é esperada deles, em virtude de haver uma preocupação com as expectativas e reações dos outros atores e outras instituições: o que o juiz irá decidir dependerá, em grau considerável, das preferências das outras pessoas que participam da “cadeia de comando”. (GOMES NETO, 2015, p. 57)

A referida modalidade de comportamento judicial também pode ser conhecida como política-positivista, por ser articulada a partir da premissa de que os juízes elaboram suas interpretações e suas respectivas decisões com notável preocupação em relação à reação e à opinião de outros juízes, ou dos legisladores, ou até mesmo do público, o que os faz analisarem por meio de um ponto de vista estrategicamente político por levar em consideração os embates entre os Poderes e as transformações dentro do Poder Judiciário bem como a resposta da sociedade civil em relação à decisão. 

Dentro de um sistema de freios e contra pesos somado ao caráter interdependente atribuído controle de constitucionalidade, o comportamento estratégico funciona como uma alternativa para evitar reações ‘agressivas’ dos outros poderes políticos, por exemplo, a recusa em cumprir ou em aceitar determinada sentença declaratória e, por conseguinte, tentar revertê-la com um novo projeto de lei ou com uma emenda constitucional. Por isso, o comportamento estratégico ‘previne’ a Corte de promover desarranjos institucionais ao sentenciar os casos difíceis. 

Nessa perspectiva, é possível compreender o papel desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal como dúbio, uma vez que sua fonte influenciadora não se trata somente da Constituição, o que traz a compreensão de que as decisões podem seguir direcionamentos destoantes ao seu texto. Esse desempenho dúbio, para Lima (2013), deve-se ao “constrangimento institucional”, cujas razões foram exemplificadas acima por Gomes Neto.

Ainda, essa postura estratégica se consolida com as inovações jurisprudenciais. As mudanças jurisprudenciais influenciam na ampliação funcional da jurisdição constitucional – o que é considerada uma tendência no Brasil – para as vias concentrada e abstrata.

O controle judicial via concentrada consiste na fiscalização constitucional das interpretações de juízes e tribunais ao apreciarem casos concretos, sendo seus julgamentos submetidos à validação da Corte. Já na via abstrata, a discussão ocorre fora do contexto do caso concreto, em que o objetivo se encontra em validar a legislação ou o ato em si. (BARROSO, Luís Roberto. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO DIREITO BRASILEIRO, 2012)

Inicialmente, as decisões tinham um caráter exclusivamente declaratório, de forma que os efeitos dessas decisões consistiam no ato do Senado em suspender a execução de determinada norma julgada inconstitucional, por exemplo. 

Contudo, o desenvolvimento da interpretação constitucional acompanhada dos variados contextos políticos transfere para as decisões forte carga axiológica – o que se relaciona com as circunstâncias apresentadas por Gomes Neto para influência em análise de julgamentos – de forma que se tornou recorrente no ordenamento jurídico brasileiro estabelecer regras por meio de decisões, mais precisamente após a EC 45/2004. 

A Emenda Constitucional 45 promulgada em 30 de dezembro de 2004 (teve como destaque a criação do Conselho Nacional de Justiça e a adoção do instituto da repercussão geral nos Recursos Extraordinários) promoveu uma Reforma no Judiciário que reconheceu a introdução das súmulas vinculantes, o que permitiu ao Supremo Tribunal Federal determinar eficácia vinculante em julgamento de processos com condições subjetivas, sem que houvesse participação de outros poderes políticos. 

Além disso, a eficácia vinculante foi introduzida por alterações legislativas, no parágrafo único art. 28 da Lei 9.868 de 1999, legislação que regulamentou a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:

Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.

Tendo em vista esse arranjo institucional entre os poderes Legislativo e Judiciário, é possível estabelecer uma associação entre o comportamento judicial estratégico com o institucionalismo estratégico apresentado por Bentes (2016), em que expõe a introdução da estratégia institucional pelo Supremo dentro do processo legislativo congressual. No início de sua exposição, o autor afirma que “as instituições só permanecem se atingem um equilíbrio de interesses entre seus agentes, ou seja, se tornam possíveis os ganhos resultantes de trocas internas”.

A estratégia institucional somente se torna viável com a colaboração de fatores internos e externos das variadas instituições para que seja possível o intérprete afirmar suas preferências pessoais sem receio de avaliações e pressões institucionais.
“Contudo, não há consenso sobre os objetivos que movem os juízes”, o que se confirma diante do resultado de um julgado é a intenção comum em não comprometer as instituições nem o Supremo, tampouco os debates. Assim, o que se traduz desse comportamento é uma constante postura de cautela.

A partir disso, entende-se que a interpretação constitucional transcrita em sentenças de constitucionalidade ou inconstitucionalidade acaba se tornando um instrumento capaz corrigir ou ampliar regras e normas editadas e criadas pelo Poder Legislativo, de forma que carrega a estratégia comportamental e institucional evidenciada acima. 

Dessa forma, as decisões judiciais resultam não somente da análise dos julgadores conforme a Constituição, mas também são resultados de questões políticas, posicionamentos dos representantes dos outros poderes políticos e dos grupos econômicos que os apoiam, receio das repercussões midiáticas e de movimentos sociais. Por isso, um comportamento estratégico institucional funciona como uma solução para manter a imagem do Poder Judiciário, no caso, do Supremo Tribunal Federal, como apaziguador, ‘bom interventor’ e de “guarda da Constituição”.

Em uma situação hipotética mais extrema, as reações de atores externos aos julgamentos proferidos pela Corte podem significar a perda de credibilidade e legitimidade do Tribunal, o que pode desencadear sua saída do jogo político, por exemplo. 

Nesse contexto, Lima (2013) chega a afirmar que o Supremo somente se encontraria “livre” no momento em que as preferências das instituições jurídicas e a do Tribunal se alinhassem, de modo que não haveria a necessidade de articular um comportamento estratégico diante do receio do “constrangimento institucional”, o que complementa o raciocínio de Bentes, quando diz que as instituições permanecem por meio de trocas internas.

As construções em torno das chamadas sentenças “interpretativas”, “manipulativas” ou “aditivas”, decorrentes da criação jurisprudencial dos tribunais constitucionais europeus, [...] atribuem ao julgador a possibilidade de manipular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, suprir as omissões constitucionais, dentre outros. (LIMA, 2013, p. 220)

Todavia, é impossibilitado ao Supremo assumir uma posição de legislador positivo - principalmente na via abstrata de controle de constitucionalidade –, uma vez que usurparia o princípio da separação dos poderes, que preza pela independência dos poderes. Por isso, o exercício do controle de constitucionalidade deve conferir uma função supressiva, de forma que o Judiciário apenas exerça a função de “retirar a eficácia jurídica dos dispositivos, expressões ou mesmo interpretações de atos normativos impugnados que sejam considerados inconstitucionais.”

Contudo, ao retirar a eficácia jurídica de dispositivos ou legislações, acaba por eliminar as interpretações admitidas, devido a declaração de inconstitucionalidade. Logo, sobressai a tese do “legislador negativo” (a tese de que o Tribunal Constitucional pudesse assumir um caráter de legislador negativo é discutida mesmo antes da Constituição de 1988. Aborda um conceito de “negação da criatividade na interpretação judicial”), que se alinha ao comportamento judicial estratégico já explicado, em que os entendimentos dos ministros transcritos nas sentenças podem promover o “jurisdizer” do Direito a partir da inconstitucionalidade. 

Por isso, a ampliação do alcance das deliberações dentro da interpretação constitucional é considerada preocupante, pois provoca uma tensão dialética no âmbito das competências do Poder Judiciário, que será abordada mais adiante.

As formas de deliberação e as técnicas de decisão aplicadas mantém o Brasil distante, em termos de comparação, do controle de constitucionalidade realizado em outros países, em especial dos países europeus, onde encontram-se tribunais constitucionais mais tradicionais, o modelo europeu de sistema de controle constitucional surgiu após o fenômeno autoritário ocorrido, formado por juízes com mandatos, que obtinham monopólio da decisão sobre inconstitucionalidade, geralmente proferidas por uma deliberação interna, oriundas de questões abstratas, assumindo um sistema de controle concentrado. (SILVA, Virgílio Afonso da. O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e razão pública 2009); como também do modelo norte-americano, tendo em vista que ao se fortalecer em suas similaridades, acabou por se distinguir das características daquele modelo.

As particularidades do modelo brasileiro consistem na “quase total ausência de troca de argumentos entre os ministros”, na “inexistência de unidade institucional e decisória” e “carência de decisões claras, objetivas e que veiculem a opinião do tribunal”, que demonstram a autonomia decisória fortalecida do Supremo Tribunal Federal ou, ainda, podem significar uma característica do comportamento judicial estratégico. 

Essas particularidades se fortalecem pelo fato de o campo de deliberação brasileiro assumir uma atmosfera cômoda, uma vez que não há possibilidade de impetrar recursos sob as deliberações dos ministros e, ainda, por cargos de ministros serem ocupados por juristas com carreiras consolidadas e sem intenções de migrarem para cargos futuros, como também não há mandato fixo, a aposentadoria é obrigatória e existem garantias judiciais que proíbem a redução de salário.

Por sua vez, a prática de deliberar (“O modelo brasileiro pode ser considerado como um modelo extremo de deliberação externa, o que o afasta definitivamente dos modelos constitucionais europeus” (SILVA, Virgílio Afonso da. O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e razão pública 2009, p. 217)) se alinha ao ideal da democracia deliberativa, em que há a necessidade de um diálogo entre as instituições e a sociedade civil. Porém, as instituições que figuram esse diálogo são representadas pelos poderes Legislativo e Executivo, de modo que o poder Judiciário não participa. Isso, porque o diálogo deliberativo assume a jurisdição como antidemocrática.

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Porém, ao mesmo tempo que exista tal subjetividade, a Corte brasileira também produz a partir de um comportamento dotado de deliberação externa. Logo, o intuito permanece em criar um diálogo com os demais atores políticos por meio dos votos divergentes (o STF decide como a soma de votos individuais de cada ministro) de cada intérprete, por exemplo e, principalmente, chamar a atenção da sociedade civil e das comunidades acadêmica e jornalística para as questões fundamentais que estão sendo discutidas, por meio da transmissão dos julgamentos em canais gratuitos de televisão, por exemplo.

Assim o controle de constitucionalidade deve se preocupar mais precipuamente com a preservação das liberdades que envolvem a participação política, como a liberdade de expressão, consciência, votação, voto universal e igualitário, pois esses são os pressupostos para a realização de um regime onde prevalece a livre manifestação dos representantes. (VIEIRA, 1997, p. 74)

Os tribunais de cúpula como o Supremo Tribunal Federal precisam proferir julgamentos que sejam reflexos de sua própria deliberação, o que é fundamental para a inclusão da razão pública e para que a racionalidade jurídica seja discutida, de forma que interaja com o controle de constitucionalidade. Nesse sentido, Rawls confirma, conforme exposição de Vieira (1997):

Ao aplicar a razão pública a Corte está a prevenir que o direito seja erodido pela legislação de uma maioria transitória, ou mais possivelmente, por interesses bem organizados e situados... que conseguem o seu espaço. Se a Corte assume o seu papel e realiza de forma efetiva, é incorreto afirmar que é simplesmente antidemocrática. (p. 68)

Rawls acredita que a política se divide em duas: a política ordinária, em que se discutem interesses, e a política excepcional, em que se discutem questões fundamentais. Nessa, há a responsabilidade essencial em discutir questões constitucionais. Assim, são impostas limitações formais com o intuito de promover um resultado por meio de um processo de livre discussão entre cidadãos iguais, de forma que se estabeleça um ambiente discursivo para que haja a deliberação de questões de justiça política e dos fundamentos constitucionais. (VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição como Reserva de Justiça, 1997)

Logo, a Corte Constitucional detentora das particularidades acima somada à presença das cláusulas super-constitucionais ou pétreas, anteriormente mencionadas, qualificam o modelo brasileiro de jurisdição constitucional como “ultraforte”, de acordo com Silva (2009). Isto é, além de herdar as características de modelos fortes de controle de constitucionalidade e as ter aperfeiçoado, ainda é acompanhada por dispositivos imodificáveis dentro do texto constitucional.  

Todavia, a qualidade de um controle “ultraforte” impede que esse diálogo deliberativo por meio da inclusão de uma razão pública seja conquistado, de forma que a racionalidade jurídica não alcança a discussão idealizada pela deliberação externa promovida pelos ministros, o que se torna contraditório – ou uma consequência prevista pela estratégia institucional.

Essa interação demonstra que os julgadores mudam suas preferências e dão votos diferentes de sua convicção pessoal. O ator não decide de maneira livre e isolada, porque isto significa uma carreira de derrotas sucessivas e, consequentemente, de nenhuma vitorias de suas convicções. (BENTES, 2016, p. 135)

Os juízes não podem efetivar suas próprias políticas e objetivos institucionais sem levar em conta os objetivos e ações correspondentes dos membros de outros ramos do governo, sob pena de não verem efetivadas suas decisões ou sofrerem outros constrangimentos políticos. (LIMA, 2013, p. 132)

Isso, devido às decisões carregadas de complexidade e distintas entre si, de forma que se torna difícil traduzir as reais intenções da Corte para com a proteção dos direitos fundamentais, assim como, o fato de os votos serem elaborados previamente, o que provoca uma postura de descomprometida dos ministros em escutar os argumentos alheios, que, por fim, desencadeia ao costume da “colagem” de decisões, de forma que não é possível identificar a real intenção do intérprete ao proferir seu voto.

Torna-se cada vez mais usual uma naturalização do discurso de que o Poder Judiciário funciona tanto melhor quanto mais abstratos forem os seus pronunciamentos, pois esse tipo de estratégia permite responder a muitos processos com uma única decisão. (COSTA; CARVALHO; FARIAS, 2016, p. 158)

Dentre esses expedientes estratégicos utilizados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, a pesquisa jurisprudencial evidenciou o uso de declarações apelativas e o recurso a conceitos abstratos cujo significado foi intensamente disputado pelos julgadores, como as acepções sobre a Constituição, separação dos poderes, a maioria e a minoria, democracia, as questões políticas, regimentais ou interna corporis, o papel e as competências do Judiciário, do próprio Supremo Tribunal Federal e do Legislativo. Com um sentido extremamente aberto, estes termos servem para legitimar todo tipo de interpretação, além de rechaçar ou acuar alguns posicionamentos. (BENTES, 2016, p. 136) 

Ao entendermos o comportamento estratégico institucional do Supremo, a complexidade das decisões como característica do Tribunal soa como uma articulação para tornar tal comportamento eficiente, de fato. Sendo o colegiado composto por juízes que procuram alimentar o jogo político e manter a reputação da Corte, decisões previamente preparadas seguidas de questões abstratas que não foram discutidas evidenciam o reconhecimento da opção estratégica que satisfaz esse propósito.  

Tal contrariedade prática, coloca a jurisdição constitucional em uma frequente tensão dialética, uma vez que assume um sistema misto, devido a coexistência dos modelos de controle de constitucionalidade difuso e concentrado. Essa tensão se torna um problema para o ordenamento jurídico brasileiro, pois coloca em risco a segurança jurídica como resultado intrínseco do funcionamento eficiente do sistema de controle de constitucionalidade. 

“O controle de constitucionalidade é exercido por um único órgão ou por um número limitado de órgãos criados especificamente para esse fim ou tendo nessa atividade sua função principal. É o modelo dos tribunais constitucionais europeus [...]. Foi adotado pela primeira vez na Constituição da Áustria, em 1920.”

 “Diz-se que o controle é difuso quando se permite a todo e qualquer juiz ou tribunal o reconhecimento da inconstitucionalidade de uma norma e, consequentemente, sua não aplicação ao caso concreto levado ao conhecimento da corte. A origem do controle difuso é a mesma do controle judicial em geral: o caso Marbury vs. Madison, julgado pela Suprema Corte americana, em 1803.” (BARROSO, Luís Roberto. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO DIREITO BRASILEIRO, 2012, p. 69)

Essa problemática foi questionada por Costa, Carvalho e Farias (2016) ao abordarem que a interpretação constitucional exercida pelo Supremo e sua respectiva funcionalidade dentro do ordenamento jurídico brasileiro estejam carregando, de maneira exacerbada, uma seletividade perante os julgamentos, devido às iniciativas políticas e as constantes mudanças jurisprudenciais que prejudicam, obrigatoriamente, a eficiência necessária. A questão da divergência de votos entre os ministros acarreta tal seletividade, que se relaciona com a tese já apresentada do legislador negativo.

Embora a interpretação judicial tenha uma dimensão criativa, especificamente o controle de constitucionalidade exercido pelo Tribunal Constitucional consiste em atividade essencialmente vinculada à Constituição – e assim legitima à luz da separação entre os Poderes –, enquanto o uso de princípios abertos o transformaria em “legislador positivo”, atuando de maneira eminentemente criativa, o que implicaria em usurpação legislativa. (BRANDÃO, 2014, p. 193) 

Logo, a partir do entendimento e seguinte desconstrução da tese do legislador negativo é possível enxergar a atuação do Supremo como legislador positivo, o que coloca em xeque a atribuição dada pela Constituição de “guarda” da mesma, já que interpreta e decide baseado em intenções diversas à soberania popular e “nesse panorama, o legislador permanece sob a possível ameaça de um cenário que restrinja suas competências de forma mais incisiva.”. 

Por exemplo, quando há a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto baseada numa interpretação conforme a Constituição, o órgão judicial acaba por modificar a norma editada pelo legislador, uma que a norma resultante corresponde a uma interpretação distinta do aprovado pelo Parlamento (BRANDÃO, 2014). Assumindo tal postura do Supremo, conseguimos enxergar o desenho institucional pelo viés do comportamento judicial estratégico.

A questão da ‘dimensão criativa’ construída em razão da interpretação se relaciona com a discricionariedade política exercida pelos ministros. Em consequência disso, é possível realizar o questionamento acerca da instrumentalização do controle de constitucionalidade, já que a posição de “guarda” da Constituição permite aos ministros do Supremo julgarem por meio de suas próprias argumentações (“É pressuposto do modelo estratégico a ideia de que os juízes constrangem suas preferências pessoais a partir de racionalidades estratégicas sobre as prováveis reações de outros atores.”), e não por uma racionalidade jurídica dotada de razão pública, elaboradas sob o viés da aplicação de princípios constitucionais abertos ou sob o pretexto de proteção aos direitos fundamentais, por exemplo.

Ainda, a referida instrumentalização transfere risco para a manutenção da supremacia constitucional, agora, assumindo a hipótese dos ministros serem “guardas” de reputação e credibilidade (“Deste modo, porém, a moral que deve dirigir a interpretação do juiz torna-se produto de sua própria interpretação.”) o Texto Maior acaba perdendo sua relevância, isso também, por conta do efeito vinculante conferido às decisões do Tribunal Constitucional, o que acarreta na produção de uma jurisprudência que destoa da verdadeira intenção constitucional. 

A introdução de pontos de vista morais e de “valores” na jurisprudência não só lhe confere maior grau de legitimação, imunizando suas decisões contra qualquer crítica, como também conduz a uma liberação da Justiça de qualquer vinculação legal que pudesse garantir sua sintonização com a vontade popular. Toda menção a um dos princípios “superiores” ao direito escrito leva – quando a Justiça os invoca – à suspensão das disposições normativas individuais e a se decidir o caso concreto de forma inusitada. (MAUS, 2000, p. 189) 

Portanto, o pensamento “lógico” defendido por John Marshall de que o controle judicial de constitucionalidade decorre da Supremacia Constitucional não se demonstra como uma característica de sua construção, mas sim como o pontuado por Pontes de Miranda: conveniência. Também, porque em sua implementação, como ocorreu no Brasil, necessitou, obrigatoriamente, de um guardião, o que traz um protagonismo prejudicial ao Judiciário que, por atuação de seus operantes (“Suas decisões são o resultado da interação política com outros grupos de poder, como o legislativo, o executivo, burocracias especializadas, a mídia, corporações econômicas, sindicatos e associações religiosas, num processo de retroalimentação aberto a informações e estímulos exógenos que, por sua vez, cobram certos posicionamentos.” (BENTES, Fernando. A ESTRATÉGIA INSTITUCIONAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO PROCESSO LEGISLATIVO, 2016, p. 136)), prejudica o funcionamento do procedimento democrático. Com isso, um procedimento idealizado como um fator equilibrador para a manutenção da separação dos poderes, termina como um favorecimento para uma “Supremocracia” (termo utilizado por Oscar Vilhena Vieira em “Supremocracia” (2008) para se referir à centralização do sistema político no STF, assim como a fragilidade do sistema representativo brasileiro. Mostra isso por meio da hipótese de que o Tribunal exerce um papel de criador de regras, acumulando a posição de interprete e de legislador no desenho institucional). 

Tão pouco em um cenário de coordenação entre os poderes estatais, de pluralismo social e de crescente complexidade da vida, a interpretação constitucional restringe-se apenas ao âmbito do processo judicial, seja objetivo ou subjetivo, e muito menos tem como único sujeito os órgãos judiciais. (MOURA, 2014, p. 22)

A perspectiva da construção da interpretação constitucional a partir da discricionariedade política dos ministros nos faz perceber o ordenamento jurídico brasileiro que não admira o Direito e o Poder Judiciário, mas sim seus intérpretes e o Supremo Tribunal Federal. Portanto, “a ponderação de princípios constitucionais e a aceitação da interpretação moral da constituição diminuem consideravelmente o grau de certeza do direito, cuja afirmação submeter-se-ia às preferências éticas do juiz individual”.

Além disso, a preparação prévia dos votos e suas distinções demonstram a falta de consenso entre os ministros, de forma que eliminam a discussão durante o controle constitucional, que se trata de um processo democrático, isso, acompanhado do costume da “colagem” somente constata o descomprometimento já evidenciado. Os princípios abertos deixados pelo poder constituinte continuam abertos e complexos, por não haver um debate para definir os efeitos casuísticos para suas aplicações em meio à atividade laboral do Direito. 

Logo, não há segurança jurídica quanto à aplicação desses princípios e se realmente condizem com as intenções para que foram preceituados porque, a partir disso, já não há compreensão da Constituição como um texto fundamental que norteia a evolução de uma sociedade e as transformações que ocorrem em nome dela já não correspondem à vontade da geração que a elaborou tampouco da geração contemporânea.

Nessas representações se revela mais que em qualquer outro campo a atual tendência do biografismo, que demonstra uma reação passiva da personalidade em face de uma sociedade dominada por mecanismos objetivos. O aspecto típico dessas biografias de juízes parece se configurar na ideia – que suscita algo como uma reedição dos antigos “espelhos dos príncipes” – de que os pressupostos para uma decisão racional e justa residem exatamente na formação da personalidade de juízes. (MAUS, 2000, p. 185)

Temos um ordenamento jurídico que se encontra em constante transformação, tendo em vista a constante produção jurisprudencial, e também porque a sociedade brasileira muda constantemente. 

Entretanto, as mudanças ocorridas no ordenamento não acompanham com especificidade as mudanças da sociedade civil no que tange à diversidade e à preservação das minorias, por exemplo, logo, tais mudanças sociais não estão acompanhadas com respaldo jurídico, ou seja, não há garantias de que as características da sociedade brasileira contemporânea está protegida por um Tribunal Constitucional atento às particularidades que podem vir a ser questionadas pelas razões de uma maioria conservadora.

Quando a Justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância moral da sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social – controle ao qual se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma de organização política democrática. No domínio de uma Justiça que contrapõe um direito “superior”, dotado de atributos morais, ao simples direito de outros poderes do Estado e da sociedade, é notória a regressão a valores pré-democráticos de parâmetros de integração social. (MAUS, 2000, p. 187)

Bem verdade, conforme dito por Vieira (1997), a Constituição de 1988 assume um caráter dirigista influenciada pela Constituição de Weimar de 1919, de forma que aglutinou o caráter corporativista da política brasileira. 

Numa sociedade plural e em forte transformação, com múltiplas concepções de verdade em disputa, o direito foi paulatinamente se descolando de um sistema de proteção de valores mais substantivos para um mecanismo formal ou processual de estabilização de expectativas, passando a ser reconhecido apenas pela sua forma – e a forma da constituição é a sua supremacia. (VIEIRA, 2018, p. 86)

Assim, sendo moldada por um movimento neoconstitucionalista que prezou pela rejeição ao formalismo, pela constitucionalização do Direito e pelo protagonismo do Poder Judiciário, torna-se cômodo o comportamento judicial que não se preocupa em estar consoante com os preceitos que o originaram e que assuma a posição independente e ‘egocêntrica’ como consequência da influência que lhe foi conferida.

Referências:

BARROSO, Luís Roberto. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO DIREITO BRASILEIRO, 2012.

BENTES, Fernando. A ESTRATÉGIA INSTITUCIONAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO PROCESSO LEGISLATIVO, 2016.

RANDÃO, Rodrigo. O STF e o Dogma do Legislador Negativo. 2014.

COSTA, Alexandre Araújo; CARVALHO, Alexandre Douglas Zaidan de; FARIAS, Felipe Justino de. Controle de constitucionalidade no Brasil: eficácia das políticas de concentração e seletividade, 2016.

GOMES NETO, José Mário Wanderley. Pretores estratégicos: por que o Judiciário decide a favor do Poder Executivo e contra suas próprias decisões?: análise empírica dos pedidos de suspensão apresentados ao STF (1993-2012), 2015.

LIMA, Flávia Danielle Santiago. Ativismo e autocontenção no Supremo Tribunal Federal: uma proposta de delimitação do debate, 2013.

LINS JÚNIOR, George Sarmento; SILVA JÚNIOR, José Ailton. O NEOCONSTITUCIONALISMO NO BRASIL E O PROTAGONISMO DO PODER JUDICIÁRIO: O CASO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

MAUS, Ingeborg. O Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na sociedade órfã.  2000.

SILVA, Virgílio Afonso da. O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e razão pública 2009.