Teoria Democrática

Por Eliomar Júnior - 24/09/2020 as 12:03

Neste artigo da série sobre democracia, vamos abordar temas relacionados com a teoria democrática, desde os primórdios da democracia até a democraracia direta nos dias atuais.

Inicialmente faz-se necessário definir algumas noções relacionadas à democracia, haja vista que tal mecanismo se faz cada vez mais presente nos regimes de governos ao redor do mundo, inclusive em países que por séculos adotaram regimes totalitários e de matriz teísta, que, por sua vez, vivem uma crescente “onda de migração” (especialmente após a primavera árabe em 2011) para um modelo que envolva participação popular direta, reivindicando direitos inerentes a condição humana e de outros povos através de protestos, revoltas e revoluções locais, gerados, principalmente, pela insatisfação popular e crise econômica, bem como através da pressão exercida pela comunidade internacional. 

O avanço dos regimes para um modelo mais aberto às questões populares e à participação da população diretamente interessada pode ser dito como algo inevitável e, por conseguinte, qualquer outro regime definido como inaceitável atualmente, do ponto de vista jurídico-político.

Democracia Direta na Antiguidade Grega

Embora o modelo de participação popular, como regime de governo, tenha atingido seu ápice após a revolução francesa (Século XlX), isso não significa dizer que o governo exercido por um povo, em determinada localidade atualmente, tenha surgido na idade contemporânea. Exemplo disso é a discussão célebre imaginada por Heródoto na sua História (Livro lll, §§ 80-82) ocorrida por volta dos Século Vl A.C. entre três persas: Otanes, Megabises e Dario. Após a morte de Cabises, os três debateram a despeito de qual seria a melhor forma de governo a ser adotada no país. Otanes propôs a entrega do poder ao povo vinculando fortemente a participação popular ao termo isonomia. Nas palavras de Bobbio: “o que há de notável é o grau de desenvolvimento que já tinha atingido o pensamento dos gregos sobre a política um século antes da grande sistematização teórica de Platão e Aristóteles.” (BOBBIO, 1985, p. 31)

Quando se busca uma definição do que é ou possa ser conceituado como democracia, é inevitável remontar às suas origens na Grécia antiga, mais especificamente à cidade de Atenas. Isso porque a cidade grega constitui uma das bases mais importantes, até mesmo para que se entende por democracia modernamente. 

Isto posto, pode-se dizer que o modelo de democracia ateniense se baseava em uma forma participativa direta. Aqueles que eram considerados aptos (homens gregos livres) se reuniam em locais públicos para tratarem dos mais diversos assuntos do interesse da pólis. A democracia era considerada um valor, um fim em si, importante meio de desenvolvimento do homem e, consequentemente, da própria comunidade. Assim, debates, discursões e o diálogo entre os cidadãos eram frequentes. As temáticas envolvidas eram das mais diversas, desde assuntos relacionados a cultura, economia, esportes e filosofia, por exemplos. Tais fatos faziam com que àqueles cidadãos que tivessem um poder de persuasão se destacassem frente aos demais. Ter uma boa oratória era sinônimo de poder e influência perante a sociedade grega.

Não restam dúvidas que os gregos contribuíram consideravelmente para o desenvolvimento dos mais diversos saberes humanos, sendo a Grécia Antiga apontada como uma civilização de grande desenvolvimento Cultural. Os gregos desenvolveram a filosofia, as artes, a tecnologia, os esportes e muitas outas áreas do saber e desenvolver humano. Porém, é importante frisar que a maneira pela qual os gregos vislumbravam como o modelo perfeito de democracia é bem diferente do vislumbrado nos dias de hoje. Isso porque os critérios para um determinado indivíduo ser considerado cidadão na Grécia antiga eram bastantes segregacionistas, isto é, excludentes. Mulheres, estrangeiros, crianças e escravos, por exemplos, não tinham permissão para participar ativamente das decisões políticas na cidade de Atenas. Ademais, outros critérios de discriminação também foram estabelecidos, como aspectos econômicos (aqueles que não possuíssem determinadas condições financeiras estavam excluídos de exercerem as atividades inerentes à politica), bem como culturais, pois indivíduos que não compactuassem com a cultura ateniense não eram concebidos como cidadãos aptos ao exercício da democracia.

Conceito de Democracia de Rousseau

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi um dos grandes nomes da teoria do contratualismo (contrato social), ao lado de Thomás Hobbes (1588-1679) e John Locke (1632-1704). Diferindo-se destes, principalmente, por entender que havia necessidade de participação direta do povo na elaboração do ato legislativo em si. O que já deixa evidente as bases do pensamento rousseauniano e explica o fato de Rousseau ser considerado “o homem mais democrático que existiu”. 

O teórico partilha da ideia de que o homem, em seu estado de natureza, é um ser livre (senhor de si), além do fato de não haver propriedade privada, em que tudo seria de todos; e que esse estado de natureza “terminou” com o advento da divisão social do trabalho e com a ideia de propriedade privada em expansão, sobretudo após a ascensão da burguesia, gerando desigualdades. Tais fatores fizeram com que o homem saísse de seu estado de bondade natural, tendo se corrompido através dos interesses inerentes à propriedade privada. 

Todavia, a fim de melhor tratar as questões relacionadas aos interesses da comunidade, os homens abriram mão de parte da sua autonomia e a delegaram à figura do Estado, mediante o que se denominou chamar de contrato social, criando, assim, uma sociedade política, com vontade e mecanismos próprios, manifestante, por conseguinte, a vontade geral.

Rousseau entende que igualdade e a liberdade são valores fundamentais para uma sociedade democrática, haja vista que para ele não é possível a existência de liberdade sem igualdade, tendo tais premissas influenciado, inclusive, na Revolução Francesa (1889). Caso haja liberdade sem que haja igualdade, existiria apenas para a manutenção de um quadro de injustiça. É o que se depreende do trecho “sob os maus governos a igualdade é ilusória e aparente, e não serve senão para manter o pobre na miséria e o rico na usurpação” (ROUSSEAU, 1980, p. 27). O teórico defende a ideia de que não pode haver hierarquia ou subordinação de um indivíduo com relação ao outro sendo as convenções a base de uma sociedade plural e o que dá legitimidade a uma sociedade democraticamente instituída.

Porém, também admite a possibilidade de representação que se daria, precipuamente, relacionadas as funções que hoje são exercidas pelos chefes de poder executivo, desde que seja um governo eficiente, forte e ágil, mas alerta que isso é muito improvável, que poucos soberanos conseguem tal proeza. Entretanto, estes representantes seriam apenas instrumentos nas mãos do povo, a fim de atender os interesses da coletividade, executando, assim, a vontade geral.

Rousseau faz questão de diferenciar vontade de todos e vontade geral. Para ele, o conflito entre as vontades particulares surge a vontade geral, só sendo possível se chegar ao interesse coletivo caso haja a asfixia da vontade particular; já a vontade de todos é a soma dos anseios particulares em si como cidadão, desprezando quaisquer interesses coletivos. Ou seja, a vontade geral é o que deve prevalecer, é o fundamento do estado rousseauniano, como pode ser percebido no trecho abaixo:

Há, às vezes, diferença entre a vontade de todos e a vontade geral: esta só atende ao interesse comum, enquanto a outra olha o interesse privado, e não é senão uma soma das vontades particulares. Porém, tirando estas mesmas vontades, que se destroem entre si, resta como soma dessas diferenças a vontade geral. (ROUSSEAU, 1980, p. 32)

Destaca ainda que a vontade geral é um importante indicativo da saúde estatal, para ele [...] quanto maior a harmonia reinante nas assembleias, isto é, quanto mais opiniões se aproximam da unanimidade, tanto mais a vontade geral se revela dominante; já os longos debates, as dissensões, o tumulto, anunciam o ascenso dos interesses particulares e o declínio do estado. (ROUSSEAU, 2001, p. 145)

Rousseau é um profundo defensor das chamadas liberdades individuais de expressão coletiva dos cidadãos. De suas premissas a despeito do pacto social é possível afirmar que só possível que um indivíduo tenha seus direitos garantidos através de uma participação efetiva do povo a fim de garantir o bem comum, não sendo possível que determinado homem abra mão de sua vontade, haja vista que, assim, estaria abrindo mão do seu próprio direito de viver. Para Rousseau “[...] renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem” (ROUSSEAU, 1980, p. 15). Só permitido que se transfira o poder, mas jamais a vontade (ROUSSEAU, 1980, p. 29).

Outro fato relevante que Rousseau analisa é o fato de que mesmo o indivíduo que, pertencendo a uma vontade geral, não consente e rejeita determinada lei (sendo forçado, portanto, a obedecê-la), é considerado membro de tal sociedade, continuando a ser um indivíduo livre. Isso acontece porque o cidadão consente todas as leis, mesmo as que não concorda, através da vontade ininterrupta que constitui a vontade geral, pois é esta última que torna os homens cidadãos e seres livres. 

Esclarece, ademais, que quando a opinião contrária ao do indivíduo é a que prevalece, tal fato deixa evidente que este homem estava em dissonância com os outros membros da sociedade e que o que idealizava não refletia o pensamento dos demais da sociedade, estando, assim, enganado (ROUSSEAU, 2001, p. 147-148).

Resta claro nos ideais deste importante teórico, quanto ao tema democracia, que é essencial que o homem seja engajado nos assuntos da sociedade, o que hoje se entenderia como assuntos políticos ou que envolvam interesses coletivos. A participação nas decisões do Estado são condições essenciais para que haja um verdadeiro corpo político, baseado na vontade geral citada anteriormente. Ou seja, Rousseau “é radical” ao afirmar ser essencial que todos participem das deliberações estatais, ainda que haja descenso e divergências de ideias quanto a que decisão deva ser tomada. O importante é que todos participem enquanto indivíduos integrantes de determinada sociedade. Isso porque “quem faz a lei sabe melhor que ninguém como deve ser ela executada e interpretada” (ROUSSEAU, 2001, p. 93).

Conclui-se, portanto, das lições de Jean-Jacques Rousseau que uma democracia ideal demanda uma participação ativa e efetiva dos indivíduos que a compõem para que ela se torne algo concreto. Os interesses particulares devem dar lugar aos interesses da coletividade atingindo, assim, a vontade geral, conforme dito anteriormente. Somente através de uma democracia direta é possível que se atinja uma sociedade igualitária e liberta. Cabe, ainda, destacar que as ideias de Rousseau colaboraram de forma considerável para as Constituições modernas, bem como para o Direito Constitucional atual, haja vista que o contrato social é algo inerente aos modelos de governos atuais, independentemente qual seja ele o adotado, sendo os princípios de Rousseau a despeito do contratualismo (delegação de parte das liberdades individuais ao Estado) o alicerce das democracias modernas.

Soberania Popular

Em seu artigo 1º (primeiro), a CRFB/1988 estabelece que:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (CONSTITUINTE, 1988)

Segundo Aristóteles, constituição “é a estrutura que dá ordem à cidade, determinando o funcionamento de todos os cargos públicos e, sobretudo, da atividade soberana” (BOBBIO, 1985, p. 47). Dito isto, é importante esclarecer a que tipo de soberania se refere o inciso l do mencionado artigo (soberania política/jurídica ou soberania popular?), bem como informar o que se entende como soberania popular.

A soberania prevista no primeiro dos cinco incisos do artigo inicial de nossa Carta Maior refere-se a soberania estatal enquanto figura representante da República Federativa do Brasil em âmbito internacional, possuidor de personalidade jurídica. Isto quer dizer que nosso país é dotado de um mesmo grau de poder equivalente aos demais em suas relações internacionais e, portanto, uma nação independente, trazendo a ideia de igualdade entre os Estados no contexto mundial. Sendo assim, este tipo de soberania está relacionado a uma espécie de soberania política e jurídica, fazendo-se importante esclarecer que a legitimidade dos governantes oriundos de um determinado Estado influencia nas suas relações com os demais em uma escala global. 

Ocorre que, a tarefa de definir o que seja entendido por soberania não é das tarefas mais fáceis, haja vista que o tema é um dos mais badalados por teóricos do estado e filósofos e estudiosos do direito. Vou ater-me apenas ao conceito que nomeia este tópico (soberania).

Pode-se dizer que a soberania popular é algo inerente às nações democráticas, tendo em conta que seu conceito constitui o alicerce dos Estados Modernos, posto que, nas palavras de Dalmo de Abreu Dallari ao citar Kaplan e Katzenbach, o termo constitui um símbolo altamente emocional (DALLARI, 2013, p. 81) e que exerce grande influência prática nos últimos séculos, sendo uma característica dos Estados Modernos (DALLARI, 2013, p. 82).

Dallari afirma que a primeira obra de valor significativo a tratar do tema soberania foi “Les Six Livres de la République”, de Jean Bodin, em 1576. Definindo que “[...] a soberania é o poder absoluto e perpetuo de uma República, palavra que se usa tanto em relação aos particulares quanto em relação aos que manipulam todos os negócios de estado de uma República.” (DALLARI, 2013, p. 84). Ou seja, por ser um poder absoluto, a soberania é algo que não se limita aos devaneios do Estado em que existe, bem como não se sujeita aos caprichos dos ocupantes dos cargos. É ilimitada e transcendente a figura do cargo que se faz representar através da mesma. Por ser perpetua é um fenômeno atemporal, não se sujeitando aos interferes inerentes aos regimes dos quais faz parte e caracterizador das sociedades modernas. 

Faz-se necessário esclarecer que esta soberania vislumbrada por Bodin no Século XVl é diferente da vislumbrada atualmente, na medida em que o teórico a defende sob a perspectiva de que um Monarca a possua. Ele seria o titular de tal soberania, a ponto de não poder abrir mão dela, já que lhe foi outorgada de maneira hereditária e, por isso, baseada na tradição, que estaria acima das normas estatais.

Dallari esclarece que “[...] no começo do século XIX ganha corpo a noção de soberania como expressão de poder político, sobretudo porque interessava às grandes potências, empenhadas em conquistas territoriais, sustentar sua imunidade a qualquer limitação jurídica.”. E acrescenta ainda que “[...] a noção de soberania está sempre ligada a uma concepção de poder, pois mesmo quando concebida como o centro unificador de uma ordem está implícita a ideia de poder de unificação” (DALLARI, 2013, p. 85-86).

Avançando na temática, resta-nos atentar a soberania exercida pelo povo, como pressuposto de um Estado democrático. E assim sendo, as teorias democráticas sobre soberania são as que melhor atendem a elaboração do presente trabalho, haja vista que estas são aquelas que sustentam a soberania como sendo originaria do povo. Porém, Dallari faz questão de esclarecer uma singular constatação:

Se a soberania é um direito, seu titular só pode ser uma pessoa jurídica. Ora, o povo, mesmo concebido como nação, não tem personalidade jurídica. Mas, como ele participa do Estado e é o elemento formador da vontade deste, a atribuição da titularidade da soberania ao Estado atende às exigências jurídicas, ao mesmo tempo que preserva o fundamento democrático. (DALLARI, 2013, p. 89).

Nessa lógica, Rousseau, diferentemente de Bodin, transfere a titularidade da soberania do soberano para os indivíduos que formam a sociedade que ocupam. Ou seja, os indivíduos aqui apenas delegam a representação a um determinado soberano, o que não quer dizer que tenha sido transferida a titularidade da soberania. Confira o trecho abaixo:

Ela é inalienável por ser o exercício da vontade geral, não podendo esta se alienar nem mesmo ser representada por quem quer que seja. E é indivisível porque a vontade só é geral se houver a participação do todo. [...] que o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus membros, e esse poder é aquele que, dirigido pela vontade geral, leva o nome de soberania. (DALLARI, 2013, p. 85)

Outra definição é a que fora estabelecida por José Afonso da Silva, o renomado doutrinador assevera que “[...] o princípio da soberania popular, cuja ideia básica, que dá fundamento à democracia, consiste na participação do povo no poder em todas as suas manifestações [...]” (SILVA, 2015, p. 369).

Avançando na temática e analisando o caso brasileiro é possível afirmar que com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil no ano de 1988, instaurou-se no pais um novo regime de governo em nossa nação, embora já houvesse, de fato, um período de transição que iniciou-se em 1985, após a ascensão de José Sarney à Presidência da República, em virtude do falecimento de Tancredo Neves (1910-1985), e que serviu de base para questões relacionadas aos novos anseios da população brasileira fossem levantados, discutidos e aprovados na Assembleia Nacional Constituinte vindo à estabelecer nossa atual Carta Magna de 1988. O país vivia assolado pela ditadura por um período de mais de vinte anos (1964-1985), em que constantes direitos foram desrespeitados ou sequer existiam, constituindo assim, um dos períodos mais sombrios da história do nosso país.

A nova ordem constitucional trouxe, de fato, mecanismos que previam a participação popular direta, não só em eleições periódicas; mas também da proposição de iniciativa popular de leis; a rejeitar através de referendo propostas legislativas; o controle da administração pública por meio de ação popular; dentre outros procedimentos de atuação sem intervenções.

“Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

I - plebiscito;

II - referendo;

III - iniciativa popular.” (CONSTITUINTE, 1988)

Conclui-se, portanto que a soberania popular, nos moldes como é concebida aqui no Brasil, retirando seu fundamento, principalmente, dos artigos 1⁰ e 14 da CRFB/1988, se dá através, sobretudo, da participação popular em determinadas eleições, legitimando a eleição de membros aos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário (no caso do Juiz de Paz). Pode-se dizer, ainda, que a participação popular direta e os resultados das eleições constituem um verdadeiro poder que não encontra outro de igual magnitude, um poder soberano, sendo este exercido através do voto de cada indivíduo que possui o mesmo valor para cada um dos participantes do pleito. Este poder só pode sofrer limitações de ordem constitucional, isso porque o próprio povo é o titular do chamado poder constituinte originário que deu início a nova ordem constitucional e, portanto, estabeleceu regras de igual hierarquia.

Democracia Direta

Pode-se dizer que a democracia direta, em uma visão simples e objetiva, seria o modo político segundo o qual todo cidadão tem o direito a expor sua opinião num debate público (reportando-se a democracia ateniense em que os cidadãos se reuniam em praças públicas para debater determinadas matérias) e, quando necessário, votar pela decisão de determinando assunto. Ou seja, o povo, na pessoa de cada indivíduo apto, vota sem que haja intermediários. Não à toa, a etimologia da palavra democracia remete ao termo “governo pertencente ao povo”, junção dos temos gregos cracia (governo) + demo (povo).

José Afonso da Silva alerta que 

[...]democracia não é um mero conceito político abstrato e estático, mas é um processo de afirmação do povo e de garantia dos direitos fundamentais que o povo vai conquistando no correr da história”, conceituando-a como “[...] é um processo de convivência social em que o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo. (SILVA, 2015, p. 128)

Resta evidente que o elemento fundamental e inicial de uma democracia é o povo. Sem povo não é possível que haja democracia. Não à toa, Lincoln era partidário de uma ideia de democracia como sendo um “governo do povo, pelo povo e para o povo”; e Burdeau entendia que “se é verdade que não há democracia sem governo do povo pelo povo, a questão importante está em saber o que é preciso entender por povo e como ele governa.” (SILVA, 2015, p. 128).

José Afonso da Silva esclarece o conceito de Lincoln:

Governo do povo significa que este é fonte e titular do poder (todo poder emana do povo), de conformidade com o princípio da soberania popular que é, pelo visto, o princípio fundamental de todo regime democrático. Governo pelo povo que dizer governo que se fundamenta na vontade popular, que se apoia no consentimento popular; governo democrático é o que se baseia na adesão livre e voluntária do povo à autoridade, como base da legitimidade do exercício do poder, que se efetiva pela técnica da representação política (o poder é exercido em nome do povo). Governo para o povo há de ser aquele que procure liberar o homem de toda imposição autoritária e garantir o máximo de segurança e bem-estar (SILVA, 2015, p. 137).

Ou seja, não há como dissociar, num governo popular, a democracia de seu elemento fundamental que é o povo. Esta é a razão de ser da própria democracia sendo seu início (origem) e um fim (bem comum) a ser atingido pelos atos estatais. É através deste que houve legitimidade para que fosse instituída a Assembleia Nacional Constituinte a fim de debater propostas que visassem a integrar o texto constitucional brasileiro em 1988. Houve um período de intensas manifestações a atos pedindo eleições diretas, dando ensejo a uma nova ordem constitucional, mas, sobretudo, um novo regime de governo, baseado em anseios populistas.

A necessidade de participação popular direta é algo inerente aos Estados modernos. A capacidade de decidir por parte da população é um dos maiores avanços na história da nossa humanidade. Haja vista que, até bem pouco tempo, afrodescendentes eram consideram seres inferiores e mulheres não podiam votar, por exemplos.

Gilmar Ferreira Mendes esclarece a principal distinção entre participação direta e indireta:

O voto direto impõe que o voto dado pelo eleitor seja conferido a determinado candidato ou a determinado partido, sem que haja mediação por uma instancia intermediária ou por um colégio eleitoral. Tem-se aqui o princípio da imediaticidade do voto. O voto indireto se o eleitor vota em pessoas incumbidas de eleger eventuais ocupantes dos cargos postulados. (MENDES e BRANCO, 2016, p. 742)

Os avanços nos ideais de ampliação da participação popular do povo tiveram significativos avanços após as ideias de Rousseau se propagarem pouco antes da revolução francesa, constituindo, inclusive, importante base para que a mesma acontecesse. Os anseios, não só por uma maior participação popular, mas também pela ampliação de homens pertencentes as mais diversas classes sociais e econômicas no pleito eleitoral, eram cada vez mais evidentes e de inevitável implementação nas mais diversas nações em escala global.

Porém, como fora explanado anteriormente a primeira democracia direta que se tem notícia remete à democracia ateniense, em que aqueles que eram considerados cidadãos, poderiam deliberar publicamente em reuniões, assembleias e convenções a despeito dos mais diversos assuntos em discussão e que serviu de base para evolução do estudo envolvendo esta temática, bem como de alicerce para governos populistas ou em transições de regimes autoritários para democráticos.

Pode-se concluir dizendo que a democracia direta, como forma de organização social, é uma das maiores expressões do que se entende como cidadania, visto que aqui o povo não abre mão do poder de decidir, não delegando seu ato de vontade e poder de opinião, materializando, assim, a participação popular nos assuntos governamentais e ratificando o Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOBBIO, N. A Teoria das Formas de Governo. Brasília: Universidade de Brasília, 1985.

CONSTITUINTE, A. N. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Planalto, 05 out. 1988. Disponivel em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 14 set. 2019.

DALLARI, D. D. A. Elementos de Teoria Geral do Estado. São PAulo: Saraiva, 2013.

MENDES, G. F.; BRANCO, P. G. G. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2016.

ROUSSEAU, J.-J. Do Contrato Social. São Paulo: Ridendo Castigat Mores, 2001.

______________. O Contrato Social. São Paulo: Formar, 1980.

SILVA, J. A. D. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2015.