Por unanimidade, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) adotou o entendimento de que as qualificadoras objetivas do crime de homicídio, previstas nos incisos III e IV do parágrafo 2º do artigo 121 do Código Penal (CP), são compatíveis com o dolo eventual.
Para o colegiado, "as referidas qualificadoras serão devidas quando constatado que o autor delas se utilizou dolosamente como meio ou como modo específico mais reprovável para agir e alcançar outro resultado, mesmo sendo previsível e tendo admitido o resultado morte".
Segundo a acusação, uma policial civil fora de serviço, incomodada pelo barulho de uma festa na vizinhança, teria disparado sua arma para espantar os participantes e atingido mortalmente um deles. Ela foi denunciada pelo Ministério Público do Paraná por homicídio com dolo eventual triplamente qualificado (motivo fútil, recurso que dificultou a defesa da vítima e perigo comum).
Dolo Eventual Não Exclui Possibilidade de Motivo Fútil
A sentença de pronúncia afastou as qualificadoras e determinou a submissão da ré ao júri popular pela acusação de homicídio simples (artigo 121 do CP, caput) com dolo eventual.
Ao manter a sentença, o Tribunal de Justiça do Paraná entendeu que a alegação de motivo fútil se confundia com a justificativa do dolo eventual, caracterizando bis in idem; que a qualificadora do recurso que impossibilitou a defesa da vítima "não se compatibiliza com o dolo eventual", e que não haveria indícios para sustentar a do perigo comum.
O relator do caso no STJ, ministro Joel Ilan Paciornik, lembrou que a jurisprudência da corte admite a coexistência do dolo eventual e das qualificadoras subjetivas (por exemplo, o motivo fútil). Ele mencionou o REsp 1.779.570, em que a Sexta Turma estabeleceu "não ser incompatível a qualificadora do motivo fútil com o dolo eventual, pois o dolo do agente, direto ou indireto, não se confunde com o motivo que ensejou a conduta capaz de colocar em risco a vida da vítima".
No entanto, o magistrado ressaltou que há controvérsia no STJ em relação às qualificadoras objetivas – situação que também se verifica no Supremo Tribunal Federal (STF), embora lá os julgados mais recentes sejam pela compatibilidade.
Meio mais Reprovável para Alcançar um Fim Diverso
De acordo com Paciornik, as decisões que concluem pela incompatibilidade das qualificadoras objetivas (como no REsp 1.486.745) se fundamentam na percepção "de que o autor escolhe o meio e o modo de proceder com outra finalidade, lícita ou não, embora seja previsível e admitida a morte".
Para o relator, "tal posicionamento retira definitivamente do mundo jurídico a possibilidade fática de existir um autor que opte por utilizar meio e modo específicos mais reprováveis para alcançar fim diverso, mesmo sendo previsível o resultado morte e admissível a sua concretização".
Além disso, segundo o ministro, a justificativa para a incompatibilidade entre o dolo eventual e as qualificadoras objetivas – que seria a inexistência de dolo direto para o resultado morte – conflita com a posição do STJ de considerar o dolo eventual compatível com "motivo específico e mais reprovável" para o crime, representado pelas qualificadoras subjetivas dos incisos I e II do parágrafo 2º do artigo 121.
Com esse entendimento, a Quinta Turma acolheu o pedido do Ministério Público para reincluir as qualificadoras na pronúncia, à exceção do perigo comum, pois o tribunal estadual não reconheceu nos fatos os pressupostos para a sua caracterização.
Número do Processo
Ementa
PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRONÚNCIA. 1) DOLO EVENTUAL. COMPATIBILIDADE COM AS QUALIFICADORAS DO ART. 121, § 2º, III E IV, DO CÓDIGO PENAL – CP. PERIGO COMUM E RECURSO QUE DIFICULTOU OU IMPOSSIBILITOU A DEFESA DA VÍTIMA. 2) PERIGO COMUM. MANIFESTAMENTE IMPROCEDENTE. ÚNICO DISPARO EM DIREÇÃO AOS PRESENTES NO LOCAL. CONSTATAÇÃO QUE PARA SER AFASTADA ESBARRA NO ÓBICE DA SÚMULA N. 7 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – STJ. 3) AGRAVO REGIMENTAL PARCIALMENTE PROVIDO.
1. A jurisprudência desta Corte e do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF oscila a respeito da compatibilidade ou incompatibilidade do dolo eventual no homicídio com as qualificadoras objetivas (art. 121, § 2º, III e IV). Precedentes.
1.1. Aqueles que compreendem pela incompatibilidade do dolo eventual com as qualificadoras objetivas do art. 121, § 2º, III e IV, do CP, escoram tal posição na percepção de que o autor escolhe o meio e o modo de proceder com outra finalidade, lícita ou não, embora seja previsível e admitida a morte.
1.2. Tal posicionamento, retira, definitivamente do mundo jurídico, a possibilidade fática de existir um autor que opte por utilizar meio e modo específicos mais reprováveis para alcançar fim diverso, mesmo sendo previsível o resultado morte e admissível a sua concretização. Ainda, a justificativa de incompatibilidade entre o dolo eventual e as qualificadoras objetivas, inexistência de dolo direto para o resultado morte, se contrapõe à admissão nesta Corte de compatibilidade entre o dolo eventual e o motivo específico e mais reprovável (art. 121, § 2º, I e II, do CP).
1.3. Com essas considerações, elege-se o posicionamento pela compatibilidade, em tese, do dolo eventual também com as qualificadoras objetivas (art. 121, § 2º, III e IV, do CP). Em resumo, as referidas qualificadoras serão devidas quando constatado que o autor delas se utilizou dolosamente como meio ou como modo específico mais reprovável para agir e alcançar outro resultado, mesmo sendo previsível e tendo admitido o resultado morte.
2. A configuração do perigo comum (121, § 2º, III, do CP) por disparo de arma de fogo tem como pressuposto que mais de um disparo tenha sido direcionado aos presentes no local ou que único disparo a eles direcionado tivesse potencialidade lesiva apta para alcançar mais de um resultado, o que não foi constatado. Para se concluir de modo diverso, seria necessário o revolvimento fático-probatório, vedado conforme Súmula n. 7 do STJ.
3. Agravo regimental parcialmente provido para também incluir na sentença de pronúncia a qualificadora do art. 121, § 2º, IV, do CP.
Acórdão
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar parcial provimento ao agravo regimental do assistente da acusação para prover o recurso especial do MPE, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros João Otávio de Noronha, Reynaldo Soares da Fonseca e Ribeiro Dantas votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Felix Fischer. Brasília, 15 de junho de 2021. J
OEL ILAN PACIORNIK
Relator