Embora a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tenha fixado a tese de que é lícito o desconto, em conta utilizada para o recebimento de salário, das prestações de empréstimo livremente pactuado (REsp 1.555.722), é preciso diferenciar o caso de conta em que é depositado o Benefício de Prestação Continuada (BPC), auxílio que visa garantir ao idoso o mínimo existencial e pode ser protegido contra descontos excessivos.
O entendimento foi estabelecido pela Terceira Turma ao manter acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) que impediu uma instituição financeira, credora em dois contratos de empréstimo, de descontar mais do que 30% do BPC depositado na conta-corrente de um idoso – benefício equivalente a um salário mínimo mensal.
Em recurso especial, o banco alegou que o acórdão violou o artigo 1º da Lei 10.820/2003, já que o idoso teria autorizado o desconto das parcelas em sua conta. A instituição também defendeu a legalidade da cobrança de parcelas no valor acima de 30% da renda do devedor.
Natureza constitucional
A ministra Nancy Andrighi lembrou que, no julgamento do REsp 1.555.722, o debate na Segunda Seção dizia respeito à diferença entre a autorização de desconto de prestações em conta-corrente e a hipótese de desconto, em folha de pagamento, dos valores referentes à quitação de empréstimos, financiamentos, dívidas de cartões de crédito, entre outras obrigações.
Naquele julgamento, apontou a relatora, o entendimento foi que o limite para consignação em folha (de 35% da remuneração do trabalhador, de acordo com a Lei 10.820/2003) não poderia ser aplicado, por analogia, à hipótese de desconto de prestações de mútuo em conta-corrente usada para recebimento de salários, com a autorização do correntista.
Por outro lado, a ministra apontou que o BPC possui natureza constitucional. Segundo o artigo 203, inciso V, da Constituição, deve ser garantido o valor de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não ter meios de prover sua própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.
Autonomia reduzida
Nancy Andrighi afirmou que o BPC não é remuneração ou verba salarial, mas uma renda transferida pelo Estado ao beneficiário, de modo a lhe assegurar, com um mínimo de dignidade, condições de sobrevivência e enfretamento da miséria.
Como consequência, a relatora destacou que a autonomia de vontade do beneficiário na utilização do BPC é bastante reduzida. Segundo ela, enquanto o benefício é direcionado à satisfação de necessidades básicas vitais, as verbas salariais permitem ao indivíduo uma margem de utilização maior, podendo ser aplicadas em despesas como lazer, educação e vestuário.
Ao manter o acórdão do TJMG e confirmar a possibilidade de limitação dos descontos, a ministra ainda ressaltou que não há autorização legal para o desconto de prestações de empréstimos diretamente no BPC, concedido pela União e pago por meio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
"Essa limitação dos descontos, na espécie, não decorre de analogia com a hipótese de consignação em folha de pagamento, mas com a necessária ponderação entre o princípio da autonomia da vontade privada e o princípio da dignidade da pessoa humana, de modo a não privar o recorrido de grande parcela do benefício que, já de início, era integralmente destinado à satisfação do mínimo existencial", declarou.
Por fim, a relatora assinalou que, conforme as normas do Banco Central, a autorização para desconto de prestações em conta-corrente é revogável. "Assim, não há razoabilidade em se negar o pedido do correntista para a limitação dos descontos ao percentual de 30% do valor recebido a título de BPC", concluiu.
Esta notícia refere-se ao processo
Fonte
RECURSO ESPECIAL Nº 1.834.231 - MG (2019/0254568-0)
Leia o Inteiro Teor.
EMENTA
DIREITO CIVIL E BANCÁRIO. OPERAÇÕES DE CRÉDITO PESSOAL. DESCONTO DAS PARCELAS EM CONTA CORRENTE NA QUAL RECEBIDO BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL AO IDOSO – BPC. PEDIDO DE LIMITAÇÃO DOS DESCONTOS. ACOLHIMENTO. VERBA DESTINADA ESSENCIALMENTE À SOBREVIVÊNCIA DO IDOSO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. RESP 1.555.722/SP. DISTINGUISHING.
1. Ação ajuizada em 08/09/2017. Recurso especial interposto em 20/05/2019 e concluso ao Gabinete em 28/08/2019.
2. O propósito recursal consiste em dizer acerca da possibilidade de limitação dos descontos efetuados por instituição financeira na conta bancária mantida pelo recorrido, na qual é depositado Benefício de Prestação Continuada de Assistência Social ao Idoso.
3. Segundo o entendimento firmado pela 2ª Seção no REsp 1.555.722/SP (DJe de 25/09/2018), os descontos de parcelas de empréstimos em conta corrente, ainda que usada para recebimento de salário, são lícitos – desde que autorizados pelo correntista – e não comportam limitação por analogia à hipótese de consignação em folha de pagamento de que trata a Lei 10.820/2003.
4. Hipótese dos autos que, todavia, não trata do recebimento de verbas salariais, mas do Benefício de Prestação Continuada de Assistência Social ao Idoso, que tem por objetivo suprir as necessidades básicas de sobrevivência do beneficiário, dando-lhe condições de enfrentamento à miséria, mediante a concessão de renda mensal equivalente a 1 (um) salário mínimo.
5. Necessário distinguishing do caso concreto para acolher o pedido de limitação dos descontos na conta bancária onde recebido o BPC, de modo a não privar o idoso de grande parcela do benefício que, já de início, era integralmente destinado à satisfação do mínimo existencial. Ponderação entre o princípio da autonomia da vontade privada e o princípio da dignidade da pessoa humana.
6. Consoante o disposto no art. 3º da Resolução BACEN nº 3.695, de 26/03/2009 (atual art. 6º da Resolução BACEN nº 4.771, de 23/12/2019), a autorização de desconto de prestações em conta corrente é revogável. Assim, não há razoabilidade em se negar o pedido do correntista para a limitação dos descontos ao percentual de 30% do valor recebido a título de BPC; afinal, o que é válido para o mais, deve necessariamente sê-lo para o menos (a maiori, ad minus).
7. Recurso especial conhecido e não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Marco Aurélio Bellizze, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva e Marco Aurélio Bellizze votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Moura Ribeiro.
Brasília (DF), 15 de dezembro de 2020(Data do Julgamento)
MINISTRA NANCY ANDRIGHI
Relatora