A adoção de preço fixo para a utilização de estacionamento privado em shopping center, ainda que o usuário não permaneça todo o tempo permitido, não configura prática comercial abusiva e está inserida na livre iniciativa, não havendo conflito entre essa política de remuneração do serviço e os direitos dos consumidores.
A pretendida intervenção estatal no controle de preço praticado pelo empresário, absolutamente excepcional, haveria de evidenciar, necessariamente, a ocorrência de abuso do poder econômico que vise "à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros", ou a inobservância de específica regulação setorial destinada ao funcionamento da ordem econômica, a extinguir a própria estrutura do segmento econômico em análise, do que, na hipótese dos autos não se cogitou.
O entendimento foi fixado por maioria de votos pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao reformar acórdão do Tribunal de Justiça de Sergipe (TJSE) e julgar improcedente ação civil pública que pedia a declaração do caráter abusivo dos preços de estacionamento praticados em dois shoppings de Aracaju.
"O empreendedor, levando em consideração uma série de fatores atinentes a sua atividade, pode eleger um valor mínimo que repute adequado para o serviço colocado à disposição do público, a fim de remunerar um custo inicial mínimo, cabendo ao consumidor, indiscutivelmente ciente do critério proposto, a faculdade de utilizar ou não o serviço de estacionamento do shopping center, inexistindo imposição ou condicionamento da aquisição do serviço a limites quantitativos sem justa causa", afirmou o relator do recurso das empresas, ministro Marco Aurélio Bellizze.
Primeira hora
A ação foi movida pela Defensoria Pública de Sergipe, que questionou a política dos shoppings de cobrar um preço fixo pela utilização dos estacionamentos no período entre 20 minutos e quatro horas, independentemente do tempo efetivo de permanência.
Para a Defensoria, o valor cobrado dos consumidores que usam o serviço por tempo menor do que o máximo estabelecido seria desproporcional e caracterizaria exigência excessiva, nos termos dos artigos 39 e 51 do Código de Defesa do Consumidor.
O juiz de primeiro grau, entendendo haver abuso apenas em relação à primeira hora de permanência no estacionamento, julgou parcialmente procedente a ação para determinar que os shoppings passassem a cobrar, na primeira hora, uma fração do preço anteriormente fixado.
A sentença foi mantida pelo TJSE, segundo o qual, a liberdade das empresas para definir os preços do estacionamento não impede o Judiciário de apreciar eventual abuso na fórmula adotada, a fim de que a discricionariedade que autoriza a cobrança não dê margem à arbitrariedade e à onerosidade excessiva contra o consumidor.
Regulação pelo mercado
O ministro Bellizze afirmou que, em situação normal de concorrência, o controle estatal do preço praticado pelo empresário é incompatível com a ordem econômica constitucional, fundada na livre iniciativa e na valorização do trabalho. Nesse cenário, segundo o ministro, a regulação dos preços praticados pelo empreendedor se dá pelo próprio mercado.
"O Estado estabelece as regras do jogo, fiscaliza o cumprimento destas, mas não pode interferir no resultado e no desempenho dos competidores", disse o ministro.
O relator mencionou o argumento da Defensoria Pública segundo o qual os consumidores que desejassem frequentar os shoppings estavam obrigados a utilizar os estacionamentos privados devido à falta de vagas nas vias públicas e à precariedade do serviço de transporte público.
Entretanto, para o ministro, essas questões são "totalmente estranhas à função desempenhada pela iniciativa privada, não cabendo ao empreendedor arcar, inclusive financeiramente, com atribuições inerentes ao Estado".
Custos variados
Ainda de acordo com Bellizze, a remuneração pelo serviço de estacionamento, em tese, não leva em consideração apenas o tempo de ocupação da vaga pelo veículo, especialmente porque a atividade envolve custos diversos, como seguro, aparatos de segurança, tecnologia e impostos.
"Não se concebe que a defesa do consumidor, erigida a princípio destinado a propiciar o regular funcionamento da ordem econômica, possa, ao mesmo tempo, ser utilizada como fundamento para justamente fulminar a livre iniciativa – a qual possui como núcleo central a livre estipulação de preço pelo empreendedor –, basilar da ordem econômica", concluiu o ministro.
Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):
Fonte: STJ
RECURSO ESPECIAL Nº 1.855.136 - SE (2016/0051004-3)
EMENTA
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INSURGÊNCIA QUANTO AO CRITÉRIO DE COBRANÇA PELO USO DE ESTACIONAMENTO DE SHOPPING CENTER PRATICADO PELO EMPRESÁRIO NO DESENVOLVIMENTO DE SUA ATIVIDADE ECONÔMICA. FIXAÇÃO DE PREÇO. ELEMENTO ESSENCIAL DA LIVRE INICIATIVA QUE, EM REGRA, NÃO COMPORTA INTERFERÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO. ALEGAÇÃO DE PRÁTICA ABUSIVA. INSUBSISTÊNCIA. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. RECONHECIMENTO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. A controvérsia posta no presente recurso especial centra-se em saber se é possível ao Poder Judiciário — e, em sendo, em que situações —, fazer controle de legalidade do critério de preço praticado pelo empresário, no caso dos autos, do ramo de shoppings centers, na exploração de seus pátios de estacionamentos, com esteio nas normas protetivas do consumidor, observados, necessariamente, os ditames da livre iniciativa e da livre concorrência, norteadores da ordem econômica.
1.1 Discute-se, especificamente, no bojo de ação civil pública promovida pela Defensoria Pública estadual, se a cobrança de uma tarifa mínima para a utilização do estacionamento do shopping center (no caso, estipulada para as primeiras quatro horas, com ressalva de vinte minutos de tolerância), independentemente de o consumidor vir a utilizar a integralidade desse período, revelaria, tal como compreendido pelo Tribunal de origem, prática abusiva vedada pelo art. 39, inciso I, parte final (condicionamento sem justa causa do fornecimento do serviço a limites quantitativos), e inciso X (elevação, sem justa causa, do preço do serviço), ambos do Código de Defesa do Consumidor, a desbordar dos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e equidade.
2. O preço praticado pelo empresário no desenvolvimento de sua atividade econômica consubstancia, indiscutivelmente, elemento essencial da livre iniciativa (concebida como um dos pilares da ordem econômica, ao lado da valorização do trabalho humano), sendo, pois, (o preço) regulado espontaneamente pelo mercado concorrencial, e não pelo Estado, em um sistema de dirigismo econômico não adotado, em absoluto, pela Constituição Federal.
2.1 Ao empreendedor, por meio do desenvolvimento de seu trabalho com vistas à obtenção do lucro – finalidade, registra-se, absolutamente legítima –, há de se garantir a liberdade de concorrência, cabendo-lhe, tão só, determinar o objeto de sua atividade produtiva (bens e serviços), o modo pelo qual a desenvolve e, principalmente, o preço que reputa adequado praticar. Não é despiciendo anotar, a esse propósito, que a estipulação do preço do produto ou do serviço colocado no mercado leva em conta uma série de fatores (custos de produção, impostos, análises mercadológicas, entre outros), que devem ser considerados unicamente pelo empreendedor, que assume naturalmente todos os riscos de sua atividade empresarial. Assim, a definição do preço e, sobretudo, seu controle, afiguram-se completamente alheios ao destinatário final e, muito menos, ao Estado, em descabida atividade interventiva.
3. A pretendida intervenção estatal no controle de preço praticado pelo empresário, absolutamente excepcional, haveria de evidenciar, necessariamente, a ocorrência de abuso do poder econômico que vise “à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros", ou a inobservância de específica regulação setorial destinada ao funcionamento da ordem econômica, a derruir a própria estrutura do segmento econômico em análise, do que, na hipótese dos autos, em momento algum se cogitou, a partir da causa de pedir delineada pela parte então demandante.
4. A partir dos fundamentos vertidos na inicial, verifica-se, ainda, um claro desvirtuamento do papel da iniciativa privada na ordem econômica, centrada na alegação de que os consumidores que desejassem frequentar os shopping centers demandados, diante da falta de vagas nas vias públicas e da precariedade do serviço de transporte público, estariam obrigados a utilizar o serviço de estacionamento.
4.1 Além de não haver nenhuma obrigatoriedade na utilização do serviço de estacionamento ofertado pelo shopping aos seus consumidores, o que, por si, já tem o condão de afastar a propalada venda casada prevista no art. 39, I, do Código de Defesa do Consumidor, atribui à iniciativa privada função que, a toda evidência, não lhe incumbe.
5. O estabelecimento de uma tarifa mínima para a utilização do estacionamento do shopping center, ainda que o consumidor não venha a usar a totalidade do tempo ali abrangido — prática comercial largamente utilizada pelo segmento em exame — não encerra prática comercial abusiva.
5.1 O empreendedor, levando-se em consideração uma série de fatores atinentes a sua atividade, pode eleger um valor mínimo que repute adequado para remunerar o serviço colocado à disposição do público, a fim de remunerar um custo inicial mínimo, cabendo ao consumidor, indiscutivelmente ciente do critério proposto, a faculdade de utilizar ou não o serviço de estacionamento do shopping center, inexistindo imposição ou condicionamento da aquisição do serviço a limites quantitativos sem justa causa.
6. Não se concebe que a “defesa do consumidor”, erigida a princípio destinado a propiciar o regular funcionamento da ordem econômica, possa, ao mesmo tempo, ser utilizada como fundamento para justamente fulminar a livre iniciativa – a qual possui como núcleo central, a livre estipulação de preço pelo empreendedor -, basilar da ordem econômica.
7. Recurso especial provido, para julgar improcedente a subjacente ação civil pública.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por maioria, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Votou vencida a Sra. Ministra Nancy Andrighi.
Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino (Presidente) e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Moura Ribeiro. Brasília, 15 de dezembro de 2020 (data do julgamento).
MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Relator