A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou o trancamento de ação penal aberta pela Justiça de Minas Gerais contra um homem denunciado por furtar de um supermercado dois steaks de frango, cada um avaliado em R$ 4. Na decisão, o colegiado aplicou o princípio da insignificância (ou da bagatela), tendo em vista o baixo valor dos produtos e outras peculiaridades do caso, que não autorizam a continuidade do processo.
"Resta a percepção de que o Ministério Público de Minas Gerais e o seu Judiciário se houveram com excessivo rigor e se afastaram da jurisprudência remansosa dos tribunais superiores para levar adiante um processo criminal de tão notória inexpressividade jurídico-penal", afirmou o relator do recurso em habeas corpus, ministro Rogerio Schietti Cruz.
Ao manter a ação, por maioria de votos, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) entendeu que, apesar do valor dos itens furtados, a aplicação do princípio da insignificância resultaria em desprestígio da função preventiva da lei, estimulando a reiteração criminosa.
Furto Famélico
O ministro Rogerio Schietti afirmou que a atividade punitiva do Estado deve estar relacionada à "dignidade penal do fato", que pode ser medida pelo seu significado social e pelas características do bem jurídico protegido legalmente.
No caso dos autos, o relator destacou que o preço de cada steak de frango equivalia, na época dos fatos (2017), a 0,42% do salário mínimo, e que a vítima do furto foi uma empresa.
Segundo o relator, embora o delegado de polícia tenha apontado a "condição de miséria" do acusado e o baixo valor dos produtos, além dos indícios de que o furto teria sido cometido para consumo próprio (furto famélico), a denúncia foi recebida – por argumentos genéricos –, e a ação foi mantida pelo TJMG.
"É de se concluir, portanto, que as peculiaridades do caso concreto não autorizam a atividade punitiva estatal", declarou o ministro ao votar pelo trancamento da ação penal.
Absurdo
Ao acompanhar o voto do relator, o ministro Sebastião Reis Júnior comentou que o número de processos recebidos pelas turmas criminais do STJ passou de 84.256 em 2017 para 124.276 em 2020. No fim de 2021, se o ritmo dessa progressão se mantiver, o tribunal terá recebido quase 132 mil processos penais.
De acordo com o ministro, além de ser "humanamente impossível" julgar essa quantidade de casos, é um "absurdo" que o STJ tenha de discutir o furto de dois produtos com valor individual de R$ 4, quando o custo da tramitação de um processo é muito superior.
"Essa situação ocorre porque a advocacia e o Ministério Público insistem em teses superadas, mas também porque os tribunais se recusam a aplicar os entendimentos pacificados no STJ. No Legislativo, discute-se o aumento das penas, mas não se debate a ressocialização e a prevenção de crimes", apontou o ministro.
Número do Processo
Ementa
RECURSO EM HABEAS CORPUS. FURTO. TRANCAMENTO DO PROCESSO. INSIGNIFICÂNCIA. VALOR ÍNFIMO. CONCEITO INTEGRAL DE CRIME. PUNIBILIDADE CONCRETA. CONTEÚDO MATERIAL. BEM JURÍDICO TUTELADO. GRAU DE OFENSA. VALOR ÍNFIMO DA SUBTRAÇÃO. RECURSO EM HABEAS CORPUS PROVIDO.
1. Para que o fato seja considerado criminalmente relevante, não basta a mera subsunção formal a um tipo penal. Deve ser avaliado o desvalor representado pela conduta humana, bem como a extensão da lesão causada ao bem jurídico tutelado, com o intuito de aferir se há necessidade e merecimento da sanção, à luz dos princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade.
2. As hipóteses de aplicação do princípio da insignificância se revelam com mais clareza no exame da punibilidade concreta – possibilidade jurídica de incidência de uma pena –, que atribui conteúdo material e sentido social a um conceito integral de delito como fato típico, ilícito, culpável e punível, em contraste com estrutura tripartite (formal).
3. Por se tratar de categorias de conteúdo absoluto, a tipicidade e a ilicitude não comportam dimensionamento do grau de ofensa ao bem jurídico tutelado compreendido a partir da apreciação dos contornos fáticos e dos condicionamentos sociais em que se inserem o agente e a vítima.
4. O diálogo entre a política criminal e a dogmática na jurisprudência sobre a bagatela é também informado pelos elementos subjacentes ao crime, que se compõem do valor dos bens subtraídos e do comportamento social do acusado nos últimos anos.
5. Na espécie, o réu primário subtraiu de estabelecimento comercial dois steaks de frango, avaliados em R$ 4,00, valor ínfimo que não evidencia lesão ao bem jurídico tutelado e não autoriza a atividade punitiva estatal.
6. Recurso em habeas corpus provido, para determinar o trancamento da ação penal.
Acórdão
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Sexta Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso ordinário, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Antonio Saldanha Palheiro, Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Laurita Vaz e Sebastião Reis Júnior votaram com o Sr. Ministro Relator.
Dr(a). DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE MINAS GERAIS, pela parte RECORRENTE: CARLOS RENÉ FRANCISCO HIPÓLITO
Brasília, 1º de junho de 2021
Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ
Fonte
STJ