STF Veda Substituição da Pena Privativa em Violência Doméstica

Por Elen Moreira - 27/04/2024 as 16:16

Ao julgar o habeas corpus impetrado após afastada a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos na condenação em 20 dias de prisão simples por vias de fato no âmbito da Lei nº 11.340/2006, o Supremo Tribunal Federal denegou a ordem.

Entenda o Caso

O Juízo da Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher condenou o paciente à pena de 20 dias de prisão simples, em regime inicial aberto, pela contravenção de vias de fato (art. 21 do Decreto-Lei nº 3.688/1941), negada a substituição de pena e concedido o sursis pelo prazo de 02 anos.

Na apelação interposta pela defesa perante o Tribunal foi dado parcial provimento ao recurso para substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

O Ministério Público interpôs recurso especial, no qual o Ministro Ribeiro Dantas, em decisão monocrática, deu provimento para afastar a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

Por fim, foi impetrado habeas corpus, com pedido de liminar, pela Defensoria Pública da União, contra o acórdão do Superior Tribunal de Justiça que negou provimento a agravo regimental.

Decisão do STF

A Ministra Relatora Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, denegou a ordem de habeas corpus.

Isso porque confirmou a jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça, a exemplo dos julgados nos HC’s 131.160 e 132.342, assentando que “[...] o art. 41 da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) obsta a conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direito em todo e qualquer caso de prática delituosa que envolva violência doméstica e familiar contra a mulher”.

A Relatora consignou, ainda, que o alcance da norma tende a coibir a violência doméstica e familiar e acrescenta:

[...] como forma de evitar retrocessos sociais e institucionais na proteção das vítimas, avanço conquistado de modo árduo, na luta pela superação do sofrimento da mulher, muitas vezes experimentado em silêncio - no recôndito do lar, do seio familiar e da alma, agredida exatamente por aquele com quem divide o “teto” e dedica o afeto.”.

Por fim, lembrou da origem da Lei nº 11.340/2006, em que “[...] foi denunciado o Brasil - pelo Centro pela Justiça pelo Direito Internacional e pelo Comitê Latino - Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), em litisconsórcio com a vítima, Maria da Penha Maia Fernandes, - tendo sido condenado no âmbito da Comissão XII, número 66 – março de 2016”. 

Pelo exposto, foi denegado o habeas corpus e mantida a ampliação da proteção da Lei nº 11.340/2006 às infrações de menor potencial ofensivo, a fim de efetivar o comando do art. 226, § 8º, da Constituição Federal.

Número do Processo 

HABEAS CORPUS 137.888 MATO GROSSO DO SUL

Ementa

HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. CONTRAVENÇÃO PENAL. VIAS DE FATO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. LEI Nº 11.340/2006. ARTIGO 226, § 8º, DA LEI MAIOR. DIREITOS HUMANOS DA MULHER. SISTEMA PROTETIVO AMPLO. INTERPRETAÇÃO DA LEI. ALCANCE. INFRAÇÃO PENAL – CRIME E CONTRAVENÇÃO. COMBATE À VIOLÊNCIA EM TODAS AS SUAS FORMAS E GRAUS. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS. INVIABILIDADE. 1. Paciente condenado à pena de 20 (vinte) dias de prisão simples, em regime inicial aberto, pelo cometimento da contravenção de vias de fato (art. 21 do Decreto-Lei nº 3.688/1941). 2. Em particulares hipóteses, a fim de compatibilizar normas jurídicas infraconstitucionais de natureza penal aos comandos da Lei Maior, bem como ao próprio sistema em que se inserem, exsurge verdadeira imposição ao julgador no sentido de reconhecer que a lei disse menos do que pretendia (lex minus scripsit, plus voluit), a exigir seja emprestada interpretação ampliativa ao texto legal, respeitada a teleologia do preceito interpretado. Precedente desta Suprema Corte. 3. Consoante magistério de Inocêncio Mártires Coelho, com apoio em Niklas Luhmann, Friedrich Müller e Castanheira Neves: “não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada, vale dizer, preceito formalmente criado e materialmente concretizado por todos quantos integram as estruturas básicas constituintes de qualquer sociedade pluralista. [...] O teor literal de uma disposição é apenas a ‘ponta do iceberg’; todo o resto, talvez o mais importante, é constituído por fatores extralinguísticos, sociais e estatais, que mesmo se o quiséssemos não poderíamos fixar nos textos jurídicos, no sentido da garantia da sua pertinência.” (LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder/Universidad Iberoamericana, 2005, p. 425-6; MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 45; e NEVES, A. Castanheira. Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1993, p. 166-76.) 4. Sistema protetivo da mulher contra toda e qualquer violência de gênero. O sistema da Lei nº 11.340/2006 - de nítido cariz constitucional e fortemente amparado em diplomas internacionais - introduz sensíveis alterações no ordenamento jurídico brasileiro, dentre as quais: i) a mudança de paradigma no combate à violência contra a mulher, antes entendida sob à ótica da infração penal de menor potencial ofensivo, e, hodiernamente, como afronta a direitos humanos; e, ii) o inegável e imperioso reforço do papel repressivo da pena. Na lição de Flávia Piovesan, “além da ótica preventiva, a Lei ‘Maria da Penha’ inova a ótica repressiva, ao romper com a sistemática anterior baseada na Lei n. 9.099/95, que tratava a violência contra a mulher como uma infração de menor potencial ofensivo [...]”. (Temas de Direitos Humanos. 10ª ed., rev., ampl. e atual. Saraiva, São Paulo, 2017. p. 430) 6. Na exata dicção do art. 6º da Lei Maria da Penha, “a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”, não mais admitida leitura sob a ótica das infrações penais de menor potencial ofensivo. 7. Ínsita a violência nos atos de agressão perpetrados contra a mulher no ambiente doméstico e familiar, cumpre estender a vedação contida no art. 44, I, do Código Penal à infração prevista no art. 21 do Decreto-Lei nº 3.688/1941. Artenira da Silva e Silva, Amanda Madureira e Almudena Garcia Manso - em artigo titulado “O Machismo Institucional Contra Mulheres em Situação de Violência de Gênero: reflexões iniciais sobre a efetividade da Lei Maria da Penha no Brasil” (Hermenêutica, Justiça Constitucional e Direitos Fundamentais. Juruá Editora, Curitiba, 2016. p. 422) -, destacam, com sagacidade ímpar, de um lado, a extrema gravidade – o poder de dano - das agressões contra a mulher, e, de outro, a dispensável tarefa de se pretender valorar a violência doméstica, exatamente porque grave toda e qualquer agressão praticada no ambiente familiar, revestida pela discriminação de gênero. 8. Nessa esteira, Soraia da Rosa Mendes, em “A Violência de Gênero e a Lei dos Mais Fracos: A proteção como direito fundamental exclusivo das mulheres na seara Penal” (In A Mulher e a Justiça. A Violência Doméstica sob a ótica dos Direitos Humanos. 1ª Edição. AMAGIS-DF, Brasília, 2016. p. 73); Eliseu Antônio da Silva Belo em “Artigo 41 da Lei Maria da Penha frente ao princípio da proporcionalidade” (Editora Verbo Jurídico, São Paulo, 2014. p. 22); Catiuce Ribas Barin em “Violência Doméstica contra a Mulher. Programas de Intervenção com Agressores e sua Eficácia como Resposta Penal. (Juruá, Curitiba, 2016. p. 61); bem como Eduardo Luiz Santos Cabette, para quem “seria um contrassenso incomensurável estabelecer que uma determinada forma de violência fosse uma ‘grave violação dos direitos humanos’ e, concomitantemente, tratá-la como mera infração de menor potencial ofensivo!” (In STJ e a Aplicação da Lei Maria da Penha às Contravenções Penais. Juris Plenum, Ano XII, número 66 – março de 2016. Caxias do Sul/RS. p. 116) 9. O art. 226, § 8º, da Carta Política consagra vetor hermenêutico de proteção da mulher – dever constitucional de agir, por parte do Estado, ante a adoção de mecanismos para coibir toda e qualquer violência nos âmbitos doméstico e familiar. 10. Ordem de habeas corpus denegada.

Acórdão

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal em indeferir a ordem, nos termos do voto da Relatora e por maioria de votos, em sessão da Primeira Turma presidida pelo Ministro Marco Aurélio, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas. Vencido o Ministro Marco Aurélio. Falou pelo paciente o Doutor Rômulo Coelho da Silva, Defensor Público Federal.

Brasília, 31 de outubro de 2017.

Ministra Rosa Weber

Relatora