Ao julgar a apelação interposta pela autora contra decisão que julgou improcedente o pedido de inexigibilidade do débito previdenciário decorrente da cumulação irregular de benefícios recebidos, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região deu provimento parcial assentando o erro do INSS e a boa-fé da autora no recebimento cumulativo de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez.
Entenda o Caso
Foi interposta apelação na ação ajuizada em face do INSS, objetivando o recebimento de indenização por danos morais e o reconhecimento da inexigibilidade do débito previdenciário, visto que a demandante já usufruía do benefício de auxílio-doença e passou a receber aposentadoria por invalidez.
O INSS constatou a irregularidade na cumulação dos referidos benefícios e, no procedimento administrativo, cessou a benefício por incapacidade temporária, cobrando da autora o débito previdenciário relativos às parcelas do auxílio-doença recebidas indevidamente.
A sentença julgou improcedentes os pedidos deduzidos na inicial e condenou a autora no pagamento de honorários advocatícios, suspendendo a exigibilidade por cinco anos, na forma da Lei n. 1.060/50.
Nas razões, a autora pugnou pela reforma da decisão, sustentando, conforme consta, “[...] que sua boa-fé objetiva e o caráter alimentar dos benefícios previdenciários tornam os valores por ela recebidos irrepetíveis”. E insistiu na condenação do INSS no pagamento de indenização por danos morais.
Decisão do TRF3
A 7ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, sob voto do desembargador federal relator Carlos Delgado, deu parcial provimento ao recurso, salientando que:
[...] na seara do direito previdenciário, a possibilidade de cobrança imediata dos valores pagos indevidamente, mediante descontos no valor do benefício, está prevista no artigo 115, II, da Lei 8.213/91, regulamentado pelo artigo 154 do Decreto n. 3.048/99 [...].
No entanto, ficou consignado que a cobrança administrativa de valores recebidos pelo segurado de boa-fé constituem verbas de caráter alimentar “[...] e, portanto, presume-se que seus titulares as utilizaram para suprir suas necessidades básicas de subsistência, razão pela qual o retorno das partes ao status quo ante se torna improvável na maioria das vezes”.
Ainda, destacou a tese firmada pelo Tribunal da Cidadania, Tema nº 979, nesse sentido e o entendimento fixado no julgamento do recurso especial nº 1.381.734/RN.
Por conseguinte, concluiu que “[...] houve má aplicação da lei pelo INSS, consubstanciado na inobservância da vedação à cumulação prevista no artigo 124, I, da Lei n. 8.213/91”.
Por outro lado, o pleito indenizatório da autora foi rejeitado, por considerar que a autarquia agiu nos limites de seu poder discricionário.
Número do Processo
0003725-61.2012.4.03.6109
Ementa
PROCESSO CIVIL. PREVIDENCIÁRIO. AUXÍLIO-DOENÇA. APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. RECEBIMENTO CUMULADO. IMPOSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 124, I, DA LEI 8.213/91. RESTITUIÇÃO DOS VALORES RECEBIDOS INDEVIDAMENTE. IMPOSSIBILIDADE. ERRO POR MÁ APLICAÇÃO DA LEI CONFIGURADO. BOA-FÉ OBJETIVA DA SEGURADA DEMONSTRADA. PERCEPÇÃO DA ILEGALIDADE PELO HOMEM LEIGO. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE CONHECIMENTO TÉCNICO ESPECIALIZADO PARA COMPREENSÃO DO FATO. RECONHECIMENTO DA INEXIGIBILIDADE DO DÉBITO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS INDEFERIDA. AUSÊNCIA DE LESÃO DE CARÁTER NÃO PATRIMONIAL. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. CUSTAS PROCESSUAIS. APELAÇÃO DA AUTORA PARCIALMENTE PROVIDA. SENTENÇA REFORMADA. AÇÃO JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE.
1 - O princípio da vedação ao enriquecimento sem causa, fundado na eqüidade, constitui alicerce do sistema jurídico desde a época do direito romano e encontra-se atualmente disciplinado pelo artigo 884 do Código Civil de 2002. Desse modo, todo acréscimo patrimonial obtido por um sujeito de direito que acarrete necessariamente o empobrecimento de outro, deve possuir um motivo juridicamente legítimo, sob pena de ser considerado inválido e seus valores serem restituídos ao anterior proprietário. Em caso de resistência à satisfação de tal pretensão, o ordenamento jurídico disponibiliza à parte lesada os instrumentos processuais denominados ações in rem verso, a fim de assegurar o respectivo ressarcimento, das quais é exemplo a ação de repetição de indébito.
2 - A propositura de demanda judicial, contudo, não constitui a única via de que dispõe a Administração Pública para corrigir o enriquecimento sem causa. Os Entes Públicos, por ostentarem o poder-dever de autotutela, podem anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, ressalvando-se ao particular o direito de contestar tal medida no Poder Judiciário, conforme as Súmulas 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal.
3 - Ademais, na seara do direito previdenciário, a possibilidade de cobrança imediata dos valores pagos indevidamente, mediante descontos no valor do benefício, está prevista no artigo 115, II, da Lei 8.213/91, regulamentado pelo artigo 154 do Decreto n. 3.048/99.
4 - Assim, ao estabelecer hipóteses de desconto sobre o valor do benefício, o próprio Legislador reconheceu que as prestações previdenciárias, embora tenham a natureza de verbas alimentares, não são irrepetíveis em quaisquer circunstâncias.
5 - Deve-se ponderar que a Previdência Social é financiada por toda a coletividade e o enriquecimento sem causa de algum segurado, em virtude de pagamento indevido de benefício ou vantagem, sem qualquer causa juridicamente reconhecida, compromete o equilíbrio financeiro e atuarial de todo o Sistema, importando em inequívoco prejuízo a todos os demais segurados e em risco à continuidade dessa rede de proteção.
6 - A demandante, que já usufruía do benefício de auxílio-doença desde 24/01/2003 (NB 300.173.400-2), passou a receber aposentadoria por invalidez a partir de 19/02/2008 (NB 528.682.899-6).
7 - Entretanto, em sede de auditoria interna, o INSS constatou irregularidade na cumulação dos referidos beneplácitos e, por conseguinte, após procedimento administrativo, cessou a benefício por incapacidade temporária em 31/05/2012, passando a cobrar da autora o débito previdenciário de R$ 50.600,52 (cinquenta mil, seiscentos reais e cinquenta e dois centavos), relativos às parcelas do auxílio-doença por ela recebidas indevidamente, entre 01/04/2008 e 31/05/2012 (ID 118110128 - p. 79).
8 - Nas hipóteses de erros administrativos oriundos de interpretação errônea ou má aplicação da lei, o entendimento jurisprudencial amplamente dominante sempre entendeu pela impossibilidade de repetição dos valores recebidos indevidamente. Precedentes.
9 - No que se refere ao pagamento de valores indevidos em razão de erros materiais e operacionais imputáveis exclusivamente ao INSS, a jurisprudência vinha dando o mesmo tratamento jurídico dispensado às outras duas categorias - interpretação errônea e má aplicação da lei.
10 - Entretanto, por ocasião do julgamento do recurso especial nº 1.381.734/RN, submetido ao rito dos recursos repetitivos, o C. Superior Tribunal de Justiça modificou o seu entendimento, exigindo nos casos de erros operacionais ou materiais do INSS a demonstração da boa-fé objetiva na conduta do segurado para reconhecer a inexigibilidade do débito previdenciário. Eis a tese firmada pelo Tribunal da Cidadania sobre esta questão: “Com relação aos pagamentos indevidos aos segurados decorrentes de erro administrativo (material ou operacional), não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela Administração, são repetíveis, sendo legítimo o desconto no percentual de até 30% (trinta por cento) de valor do benefício pago ao segurado/beneficiário, ressalvada a hipótese em que o segurado, diante do caso concreto, comprova sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era possível constatar o pagamento indevido.” (Tema nº 979)
11 - Os efeitos definidos no mencionado representativo da controvérsia foram modulados com base na segurança jurídica e no interesse social envolvido, de modo a atingir somente os processos distribuídos, na primeira instância, a partir da publicação do v. acórdão (23/04/2021).
12 - Assim, o pagamento indevido de valores em razão de falha imputável exclusivamente ao INSS não seriam passíveis de restituição até 23/04/2021 e, a partir da referida data, em razão da modulação de efeitos, seria exigido, como condição para o reconhecimento da inexigibilidade do débito previdenciário, a demonstração da boa-fé objetiva do segurado ou pensionista nas hipóteses de erro operacional ou material.
13 - In casu, constata-se que houve má aplicação da lei pelo INSS, consubstanciado na inobservância da vedação à cumulação prevista no artigo 124, I, da Lei n. 8.213/91. Tal falha, por si só, deu origem ao débito previdenciário ora impugnado.
14 - A boa-fé objetiva da autora perante o INSS ao longo de todo o período controvertido é evidente, uma vez que ela não ocultou ou adulterou informações por ocasião do requerimento administrativo dos benefícios e, por não ter conhecimento especializado, é natural que ela presumisse que os valores recebidos até então eram devidos, uma vez que alicerçados em atos praticados por servidores do órgão, que ostentam fé pública e, portanto, geram a expectativa nos segurados de que estão em conformidade com a lei.
15 - Não se trata de uma situação em que se poderia exigir comportamento diverso da autora, ante a flagrante ausência de conhecimento técnico especializado, sobretudo no que se refere às hipóteses legais de cumulação indevida.
16 - Em decorrência, tratando-se de erro exclusivo do INSS e configurada a boa-fé objetiva da demandante, deve ser reconhecida a inexigibilidade do débito previdenciário.
17 - Não merece prosperar, contudo, o pleito indenizatório da autora, eis que a reparação em questão pressupõe a prática inequívoca de ato ilícito que implique diretamente lesão de caráter não patrimonial a outrem, inocorrente nos casos de mera notificação da autora acerca da existência de irregularidade na manutenção de benefício previdenciário, tendo o INSS agido nos limites de seu poder discricionário, em cumprimento ao disposto no artigo 115, II, da Lei n. 8.213/91, adotando os procedimentos administrativos cabíveis na espécie, o que, por si só, não estabelece qualquer nexo causal entre o ato e os supostos prejuízos sofridos pela segurada. Precedente.
18 - No que se refere à verba honorária, de acordo com o entendimento desta Turma, esta deve ser fixada em 10% (dez por cento) sobre o valor atribuído à causa, posto que, de um lado, o encargo será suportado por toda a sociedade - vencida no feito a Fazenda Pública - e, do outro, diante da necessidade de se remunerar adequadamente o profissional, em consonância com o disposto no art. 20, §§ 3º e 4º, do Código de Processo Civil.
19 - Isentado o INSS das custas processuais.
20 - Apelação da autora parcialmente provida. Sentença reformada. Ação julgada parcialmente procedente.
Acórdão
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Sétima Turma, por unanimidade, decidiu dar parcial provimento à apelação da autora, para reformar a sentença de 1º grau e julgar parcialmente procedentes os pedidos deduzidos na inicial, a fim de determinar a cessação da cobrança administrativa, ante o reconhecimento da inexigibilidade do débito previdenciário relativo às prestações do benefício de auxílio-doença (NB 300.173.400-2), recebidas pela demandante de 01/04/2008 a 31/05/2012, bem como condenar o INSS no pagamento de honorários advocatícios arbitrados em 10% (dez por cento) sobre o valor atribuído à causa, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.